sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

DA IMPRENSA - Crônica de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

DA IMPRENSA  


Deveras não é simples o debate do tema e nem pretendo me arvorar na condição de certeiro apreciador da questão, mas apenas expressar uma opinião como qualquer um do povo.  Na vida tudo tem limites e nada no mundo da nossa realidade cognitiva é infinito, a não ser nosso desconhecimento do que seja o próprio infinito. Assim, podemos dizer que a imprensa constitucionalmente livre é necessária, mas não sem limites, como tudo na vida costuma ter. Constitucionalmente livre apesar de nem todos poderem avaliá-la em toda a sua pretensão (dela). Muitas vezes ela não está a difundir a opinião livre, mas produzindo a opinião nos rumos em que investe. A imprensa em todas as suas conotações há que não ser partidária radicalmente, como acontece de ser, modificando a verdade, imputando ideologias e defendendo políticas de partidos em consonância com interesses também financeiros. Muitas vezes esconde a verdade ou a transforma. E quando quer ou precisa, como "negócio" que não deixa de ser, dispara sua artilharia pretendendo alcançar a independência interior de um segmento populacional. Basta uma semana de bombardeio prejulgado para trazer à tona o "espetáculo",  que é o que vende. Desde então, reputações inteiras ou ideias podem ser destruídas por completo. Como não regulamentar isso? É comum nos noticiários nacionais a colocação do termo "suposto", para que se eximam da responsabilidade. Mas também é de fácil suposição que a notícia se pressupõe na cabeça dos leitores e aí o prejuízo já está causado. Nos EUA ocorre, em vários casos, de não ser o réu fotografado em suas idas ao júri criminal, sendo permitido o desenho gráfico das pessoas envolvidas como cautela para uma possível absolvição. Essa expressão "regulamentar", a qual gera uma pseudo fobia aos mercadores de ideias ou até mesmo aos

SAMBA PRA MINHA ESPERANÇA - Crônica de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

SAMBA PRA MINHA ESPERANÇA

Segunda-feira chuvosa em Porto Alegre. Acordei dentro de um cinza chumbo, levei os filhos ao colégio, voltei pra dar uma ordem na casa, sem saber por onde começar, as horas corriam. Almoço, filho no oftalmologista, a chuva seguia... Três da tarde, olho no relógio aflita, trânsito trancado. Minha amiga Bárbara e eu, estamos em cima do laço, preparando a Noite da Palavra, um projeto bonito, com poemas no varal, atrizes lendo textos de escritores, shows...

A chuva no para-brisa me dando angústia, ainda tinha que voltar pra casa a tempo de passar roupas, a louça toda do dia anterior ainda estava suja na pia. O filho menor querendo um técnico para o computador que estragou e o tempo voando. Entramos juntas no asilo Padre Cacique, cheguei a comentar que não era o dia ideal para irmos a um lugar triste, mas a Bárbara não queria nem saber, não havia mais tempo, teríamos nessa tarde, que falar com um pessoal da melhor idade, que faz uma roda de samba segundas-feiras ali.  Entramos. Cheiro de hospital. Alguns velhos pelo pátio, a chuva não colaborando em nada.  Estão lá embaixo no porão- diz a moça.  No porão, penso eu, meio deprimente o local. Descemos e, de repente, um samba zuniu pelas frestas da porta. Fomos recepcionados pelo seu Luiz e seu melhor sorriso, pedindo que passássemos com um gesto largo do braço. Em segundos esqueci que estava num porão, num asilo, esqueci que era segunda –feira e que chovia. Lá dentro, treze pessoas faziam o melhor samba de raiz, com cabelos brancos, firmes no cavaquinho, viola gemendo, cuíca e bandolim. Ali não existiam velhos, tinha suingue, ziringuidum, balacobaco...  Os olhos de todos sorriam, o samba contagiava. Fez-se madrugada naquela

DE GALOCHA E CARTEIRINHA - Crônica de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

DE GALOCHA E CARTEIRINHA

É fácil identificar um chato. Como? Simples: Pelo comportamento constante. É sempre o bom, o justo, o dono da verdade. O que conhece as pessoas mais importantes e fala nelas com um arzinho de desdém, como se todas as celebridades comessem na sua mão. Ele finge estar prestando atenção na conversa, mas assim que toma a palavra, não solta até o último bocejo do interlocutor. Qualquer fato mencionado já aconteceu com ele ou com algum amigo dele que ninguém conhece. E, lógico, ele corta a história do outro para contar a sua. E nos mínimos detalhes. Porque todo chato é prolixo. Outra peculiaridade, é sempre se colocar como exemplo para ilustras suas longas narrativas. Com autoestima elevadíssima, é um apaixonado por si mesmo e faz absoluta questão de deixar isso muito claro. “Primeiro ele, segundo ele, terceiro ele”. O resto do mundo vem depois.

Não tente comentar com o chato sobre algum lugar que você queira muito conhecer. Ele já foi. E se não foi,
o lugar é brega ou mal frequentado. Basta alguém dizer que comprou um equipamento novo, seja lá o que for, ele logo desvaloriza para enaltecer o próprio equipamento. Sim, porque ele tem ou já teve um do mesmo tipo, porém, muito melhor.

O chato que se preza é também um especialista em conselhos. Daqueles que a gente não pede, mas por fragilidade acaba ouvindo. E como grande conhecedor da alma humana, ele fala com propriedade sobre o que é melhor para a vida dos outros. Decide quando e como as coisas devem ser feitas e não aceita ser contrariado. Quando algo dá errado, ele diz: “eu avisei, não quis me

CARTA A MEU PAI - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

CARTA A MEU PAI

Os mugidos cessavam de me assombrar quando a Radio El Mundo entrava em la noche. Os Love is a many splendored thing, Embraceable you, Perfidia, Cheek to cheek, The man I love me fascinavam no escuro do quarto rústico de onde eu ouvia compridos suspiros que hoje me parecem de amores perdidos na curta juventude.

Aprendi a gostar de música boa, música de pessoas apaixonadas sem saber se por alguém, algo, tudo, todos.

Tu eras assim, ensinavas coisas grandiosas sem as conhecer. Despertar o bom gosto musical não foi a única coisa, embora isso, a meu ver, tenha sido muito.

Tinhas o estranho-louco hábito de recolher cenas emocionantes de filmes, de livros, da vida. Depois as contavas para mim, o que me viciou em colecioná-las também e, além disso, e mais grave, ensinou-me a pensar através de cenas, legando-me o temível pensamento fragmentado.

Tu me ensinaste a contar histórias nessa ânsia de partilhar com os outros os pequenos contos que a vida nos entrega prontos para o papel. Me deixaste a triste-louca mania de criar mundos alternativos e lembrar ações comoventes ou espetaculares.

Contavas que Saint Exupéry, o autor de O pequeno príncipe que, como tu, gostava de pilotar aviões, em visita à Argentina convidou a moça de mais rara beleza para ir conversar perto das estrelas.

Eras estudante e te aproximaste de uma jovem que caminhava pelas ruas de Porto Alegre. Como é teu nome? Melanie Klein. Acompanhaste-a até a porta de casa e aguardaste alguns minutos ansiando por revê-la. Foste surpreendido

O LEITOR - Crônica de Gustavo Ventura Gomes (Porto Alegre, RS)

O LEITOR

Saí para o lanche as 17 hrs de uma tarde ensolarada, antecipada no horário de verão. A brisa incessante provocava um frescor suave. Mesmo assim, movimentava as plantas do entorno, num farfalhar digno de orquestra. O verão chegará logo. Fiz a opção mais comum para o lanche. Com dois envelopes de ‘clube social’ trazidos de casa, atravessei até o outro lado do shopping e pedi o de sempre, um expresso na Praver. Voltei e fui ao refeitório dos funcionários no subsolo, junto a garagem. Lá há uma boa mesa, microondas e pia. Também uma boa janela, que nos serve um pouco de jardim e um canto de céu. A opção incomum é caminhar uma quadra e sentar-se na padaria Bassani para comer uma fatia de marta-rocha ou um pedaço de batata doce assada na hora com um “cortado” servidos no balcão.

Ainda atravessando o shopping, indo buscar o tal café, vejo sentado na mesa externa da loja de chocolates, um senhor bem velho, magro e muito alto, com sua bengala sustentando suas duas mãos, uma sobre a outra, em posição de escuta, imóvel, com a atenção ao que lhe era lido pelo outro homem ao seu lado. Presto atenção e penso ser o pai do Fábio, amigo fotógrafo, que foi muito amigo da Ventura Livros. Quando volto com o café para descer as escadas que me levarão ao refeitório, caminho mais pausadamente, equilibrando o café quente. Chego a pensar em me fazer lembrar, afinal era seu Luigi del Re, que tantas vezes frequentou a livraria no tempo da Andradas, no número 1332. É fácil recordar o Fábio apresentando seu pai que depois virou frequentador da livraria. Homem alto e de passos rápidos,

ISABELA E SOFIA - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

ISABELA E SOFIA

Entrou e chamou pela mãe. Não obteve resposta. Deve estar na cozinha preparando o jantar, pensou Isabela, afinal sempre passou a maior parte do tempo por lá. Parou logo na entrada, esperando ser recebida. Olhou ao redor e escutou o silêncio da casa equivalente ao tempo em que esteve fora. Andou mais um pouco e avistou o corredor que conduzia aos quartos. Abria as portas e os sussurros e risos das brincadeiras passadas libertavam imagens da infância e da adolescência.

No aposento dos irmãos, sentiu saudades da afinidade e da proteção deles. Curiosa remexeu nas gavetas, desfrutando do isolamento e do espaço a sua disposição. Queria invadir a privacidade masculina, o que sempre lhe fora negado – único motivo de arruaça entre eles e ela. Como irmã menor a curiosidade pelo quarto dos irmãos nunca fora saciada.

Revirou as gavetas. Encontrou a caixinha com as bolas de gude, um estilingue, alguns carrinhos descascados, o uniforme do time da escola, fotografias de ex-namoradas e algumas revistas pornográficas. Folhou-as sem maior interesse.

Continuando sua excursão pela casa materna, permaneceu imóvel em frente à porta do próprio quarto, aquele que a abrigara durante a maior parte da vida. Quando entrou, o tempo olhou para trás. A cama de solteira mantinha a colcha bordada pela avó, na pequena cômoda o porta-joias de louça continha velhas bijuterias em desuso, o vasinho de cristal com as flores de tecido desbotadas pareciam esquecidas. Nas

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

RECEITA DE FAMÍLIA - Crônica de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

RECEITA DE FAMÍLIA

Tomando todo o cuidado com a fragilidade dos enfeites, ela os distribuía pelos galhos do pinheirinho. Bolinhas coloridas e brilhantes de todos os tamanhos, tirinhas de algodão imitando neve, laços verdes, vermelhos e dourados. Em duas horas, mais ou menos, uma bela árvore surgia no canto da sala. Depois, segurando com delicadeza, acomodava o Menino Jesus na manjedoura. Entre Maria e José. Atrás deles, Vaquinhas e ovelhas – “a respiração dos animais aquece o recém-nascido”. Logo em seguida, os reis magos e os pastores. Todos em seus lugares, o cenário era adornado com pedrinhas e gravetos, criando um clima de aconchego. A partir daquele instante, só expectativa. A chegada do Natal era o foco de nossas vidas em dezembro.

— Criança é bicho bobo — ela dizia, rindo-se de nossa ansiedade.

Um dia, impiedosamente, meu irmão destruiu nossas ilusões ao revelar a verdadeira identidade de Papai Noel. Ela tentou despistar, mas as provas eram irrefutáveis: dentro daquela roupa grossa e calorenta, nada mais, nada menos, que meu tio. O trenó, tão esperado, não passava de um carro de praça que o deixara na porta. E a rena encantada, um chofer que sequer sabíamos o nome.

— Adolescente é bicho chato— resmungou contrariada.


A ruptura de nossos sonhos pela descoberta, não a impediu de continuar montando a árvore no canto da sala. Por anos e anos. Como fizera sua mãe e, antes dela, sua avó. Os rituais se mantiveram intactos. A Missa do Galo transmitida pelo rádio, a troca de presentes, a mesa posta com cuidado. E, cafonices à parte, aquele peru com farofa úmida, velha receita de família. Assim ela transmitia os gestos de amor que herdara, como um elo entre os que se foram e os que virão. Sem nenhum traço de melancolia. E para manter o que nos liga, faço a mesma coisa.

PAPAI NOEL DE CHOCOLATE - Crônica de Dôra Borges (Cássia, MG)

PAPAI NOEL DE CHOCOLATE

É quase Natal e, gentilmente, eu ganho um presente de duas alunas em agradecimento à orientação do trabalho monográfico, após a banca de apresentação. Até aí, tudo bem.
Mas quando chego em casa, abro o embrulho e me deparo com uma bela caixa de papelão escrito “Magia”, contendo um Papai Noel de chocolate. Achei o velhinho tão bonitinho e simpático, segurando o seu habitual saco de presentes. Meio sem querer acreditar em seu destino, fui logo pensando: como vou comer esse Papai Noel? A minha reação foi instantânea: não tenho coragem.
Deixo-o no centro da mesa de jantar e, em todas as refeições, me vem a mesma interrogação: como ter coragem de comê-lo?
Imagino a trágica cena e sinto-me como o lobo mau devorando a vovozinha.
Porém, mais dia, menos dia, isso terá de acontecer. E então não saberei por onde começar. Se pelos pés, se pela cabeça... Ai meu Deus, que suplício!
Não. Definitivamente, não farei isso. Posso até ser castigada e não receber sua visita, ficando sem presente algum ao deixar meu sapato na janela, na Noite de Luz.
Decido então colocá-lo na minha estante e esperar o Natal passar. Se meus pedidos forem realizados, volto a pensar (ou não) no assunto.
Nesse meio tempo, fica o meu apelo às empresas fabricantes de chocolates e outras gostosuras que, por piedade de causa, não fabriquem Papai Noel e Coelhinho da Páscoa de chocolate ou bolo de aniversário com foto comestível. Isso poderá trazer uma grande crise de consciência na hora de devorá-los. Afinal, se você gosta tanto de alguém, espera que esse alguém lhe traga um presente ou quer parabenizá-lo por existir etc. e tal, como gulosamente devorá-lo?
E lá está meu Papai Noel na estante de bibelôs.

Data de validade: fevereiro de 2014.

DO VAZIO, O PRINCÍPIO - Crônica de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

DO VAZIO, O PRINCÍPIO

Nessa época, todos querem manifestar-se. Se não o fizer, parece descaso com os amigos, com o espírito de renovação que ronda sempre os finais de ano, com a espiritualidade ornamentada de luzes, de músicas, de anjinhos e enfeites fluorescentes nas ruas e vitrines espalhadas pela cidade. É de novo Natal.
Mensagens circulam na Internet com textos, imagens, músicas, desenhos coloridos que piscam e brilham sem cessar. Uma delas (aliás, recebi mais de uma vez) falava sobre o “Princípio do Vazio”, alertando para o vício de guardar coisas, ou sentimentos que não nos servem mais.
Desfazer-se abre espaço para outros inícios, dizia a mensagem, o que remete à boa ideia de novidade, de frescor, de viço e se contrapõem ao que está gasto, obsoleto, quem sabe anciano até – induzia o texto.
É de novo Natal. Nos intervalos das luzes e cores paira certa nostalgia e, só por isso, contrariando a mensagem do desfazer-se, fiz uma lista de pedidos.
Papai Noel, se for possível, bem que eu queria de volta:
Aquele sapato preto de pelica, de salto alto bem fininho, que ele carregou para mim, depois do baile, no caminho para casa;
a mini saia que fez sucesso, nos jogos inter séries do colégio, e eu fingia não notar;
O caderno de Filosofia que não sei onde foi parar, com as minhas primeiras poesias dedicadas a um professor da Faculdade que nem lembro mais o nome;
As cartas e os bilhetes do antigo namorado, aquelas que eu queimei, no primeiro ano de casada, porque a vida estava completa e era para sempre;
As fotos que rasguei porque me achei horrorosa. Não ia me registrar para a posteridade com aqueles cabelos antes da escova progressiva;
O livro “Mila 18”, de Leon Uris, que encerrou minha adolescência. Perdi, porque emprestei e não fui atrás;
A colcha de crochê feita pela minha bisavó, especialmente para mim e que não sei que fim levou;
A casa de campo que abri mão na separação. Não quero para sempre, só para reviver a infância das crianças e o tempo das ilusões;
Os cachinhos de cabelo das minhas filhas. Sei que não me desfiz deles, estavam enroladinhos num papel de seda dentro de uma bolsa. Será que dei a bolsa?
Esse, eu não sei se posso pedir, mas, Papai Noel o primeiro amor tem um gosto de verdadeiro...
Tempo. Só para fazer diferente algumas coisas. É eu sei – tempo – já é mais difícil, entendo...

Papai Noel, escuta. Eu não sou do grupo que guarda e, portanto – desse vazio recomendado – bem que eu queria (outra vez) o princípio.

VIVÊNCIAS - Crônica de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

VIVÊNCIAS


O que mais assusta certas pessoas em termos de diálogo é aquilo que se chama de um mergulho interior. Muitos não se consideram fortes o bastante e cada qual tem suas razões certeiras ou não para deixar de assumir diante de alguns, ou mesmo publicamente, aquilo que de uma forma natural deveria emergir de uma própria maneira de ser. É o temor consubstanciado até mesmo na vergonha que se submete ao império da crítica alheia. É como exemplo o receio da confissão de ter sido agente passivo de um desamor ou do consentir em ter errado, esquecendo-se que isso não significa submissão inalterável a qualquer desses fatos. É não compreender que se agindo desta forma apenas será obtida uma profunda solidão perante a vida, que se transmuda e evolui através o diálogo salutar e verdadeiro quanto às situações que são assumidas e discutidas com os argumentos que emergem de nossa alma. E essa finalidade visa que possamos aceitar novas posições ou conclamar nosso sentido de vivência.

EM SE PLANTANDO TUDO DÁ - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

EM SE PLANTANDO TUDO DÁ – uma reflexão sobre cultura

Uma jovem, os cabelos longos e sedosos, o sorriso largo, a despeito dos olhos tristes, entrou na Galeria Independência, em Porto Alegre. A surrada bata indiana, esticada pelo ventre protuberante de seus oito meses de gestação. Oferecia pares de brincos e óculos escuros argentinos para os lojistas. Houve um momento em que ela sentiu que enquanto se dirigia para a próxima boutique, os funcionários a seguiam com o olhar, as expressões faciais nada simpáticas. Um deles chegou a interpelá-la e ela respondeu que só estava vendendo objetos por um valor maior do que aquele pelo qual os adquirira. Qual era o problema de alguém ganhar dinheiro para adquirir o enxoval do seu bebê?
Essa mulher, só muitos anos mais tarde, viria a saber que aquilo era contrabando ou descaminho, algo ilícito. Em Uruguaiana parecia natural, por quê? Por que era um costume, fazia parte da cultura do lugar. E, de volta a Uruguaiana, longos anos depois, pegou-se sentada no local onde tem seu pequeno negócio, casualmente uma galeria, escolhendo meias de lã de um outro jovem homem, que as retirava de uma discreta sacola plástica. Disse não, pois estava dentro de uma galeria comercial, os

PEQUENOS ABANDONOS - Conto de Claudio CAlex Fagundes (São Paulo, SP)

PEQUENOS ABANDONOS

- Faz de conta que não existe nada, que tudo aquilo que a gente vê lá fora está longe demais. Não é tanta mentira assim!
Levantou. Foi como se fosse trocar um disco, mas desviou da vitrola e se encaminhou para a estante de livros. Também não procurou nenhum livro. Apanhou, isso sim, um cigarro. Acendeu.
- Não... não sou tão alienado assim - continuou - Não me olhe com esse olhar reprovador!
- Não estava pensando nada - disse ela - não estou reprovando nada! Acho que você até tem razão quando diz isso!
Ele levantou. Tomou o cigarro das mãos dela e deu uma tragada. Soltou a fumaça para o outro lado. Trouxe o cinzeiro e sentou-se na cama.
Ela acendeu um outro cigarro. Sentou-se também. Pausa.
- Você vê esse olhar reprovador em tudo - disse ela com o cigarro pelo meio.
- E o que você está fazendo agora? Por acaso não está me chamando de paranoico? Ou reprovando minha atitude?
- Sua conduta está intolerável. Você está nervoso demais para o meu gosto. Vou abandoná-lo.
- Claro que vai, eu também não te suporto mais - disse ele e saiu.
Fechou a porta delicadamente. Não fez maiores dramas, não havia razão. Ela é uma ótima mulher, mas o que se pode fazer - pensou. Desceu no elevador. É impossível suportar uma relação em que a paixão se escasseia e dá lugar àquela

CONVERSA ENVOLVENTE - Crônica de Vera Ione Molia Silva (Uruguaiana, RS)

CONVERSA ENVOLVENTE


Ontem fomos uma amiga, meu filho e eu a Bella Unión, Uruguay, fazer umas comprinhas (nada do que vocês estão pensando) e estávamos num papo tão animado que andamos uns dez minutos num cortejo muito lento. De repente, eu disse brincando: "Será que não estamos seguindo para o cemitério?" Ela perguntou para o motorista de um carro vizinho se havia algum problema com a estrada e ele confirmou que estávamos acompanhando um funeral.

A MULHER DO AVON - Crônica de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

A MULHER DO AVON

Eu não sabia quem era o Seu Avon, mas a mulher dele, seguidamente, aparecia lá em casa para uma longa prosa com minha mãe.
Eram amigas, acho que eram amigas desde a infância, minha mãe oferecia chá com bolachas Maria ou um mate doce. Teve uma tarde que elas detonaram uma jarra de Q-suco de morango com bolachas de água e sal. Naqueles tempos não havia o temor da balança e do diabetes. A mulher do Avon era muito querida, trazia revistas que minha mãe folheava, atentamente, e em outras vezes trazia presentes.
Nos dias de visita – normalmente na hora do almoço – a mãe comentava que tinha que preparar algo para esperar a mulher do Avon. O pai não gostava dela, achava uma mala sem alça, decerto tinha lá os motivos dele.
Nos meus dez anos o que importava eram os jogos de futebol no campinho próximo da minha casa, andar na Monareta e assistir Bonanza nos finais de tarde. As amigas da mãe eram, apenas, amigas da mãe.
Mas me intrigava o oculto do Seu Avon. Deveria ser uma pessoa importante, tão importante que a mulher dele não tinha nome, era simplesmente a mulher do Avon.
Certo dia a mãe falou que a mulher do Avon estava doente e foi visitá-la no hospital. No dia seguinte a mulher do Avon falecera. Foi um dia muito triste lá em casa, aliás, em toda a vizinhança.
Quando meus pais voltaram do velório perguntei como estava o Seu Avon – aquela pessoa importante que nunca tinha visto –, afinal, eram amigos da nossa família e eu tinha que mostrar um interesse no acontecido.
– Que seu Avon, guri? – minha mãe devolveu a pergunta.
– A mulher dele não morreu? Ele está bem?
Com um semblante ainda triste, minha mãe sorriu e não disse nada.

E eu nunca fiquei sabendo quem era aquele tal de Avon.

O CRIADOR E SUAS CRIATURAS - Conto de Jorge Silveira Wernz (Alegrete, RS)

O CRIADOR E SUAS CRIATURAS

Após seis dias de trabalho incansável para a formação do UNIVERSO, resolveu Deus dar uma sesteada em sombra boa e aguada farta.
Acho que para isso escolheu o Rincão de São Miguel.
Após o almoço, entre uma "madorma" e outra, ficou observando a água cristalina que corria próxima de si. Estendeu suas mãos em conchas, bebericou dois ou três goles e disse-lhe:
"Bueno, minha amiga, tu vais ser o maior tesouro que criei para a humanidade. Para conservar-te limpa, vou criar o MUÇUM, o CASCUDO e o JUNDIÁ, pois do barro armazenado em teu leito, eles tirarão sua sobrevivência. Para que esses não cresçam desordenadamente, colocarei a TRAÍRA que permanecerá sempre em seu habitat. Como o seu crescimento pode ser excessivamente grande, darei ao DOURADO um poder maior de ação para que a TRAÍRA não comece a se 'fresquear" demais e querer ter muitos filhos. E, o DOURADO que não fique muito alegre, porque ele terá um crescimento controlado pela PALOMETA que também colocarei em suas águas. Pode ser que a PALOMETA seja o maior erro que farei, mas acredito que colocando o JACARÉ, ele controlará o excessivo nascimento das Palometas. O controle dos jacarezinhos que a natureza não quiser receber, a TRAÍRA e o DOURADO controlarão. Enfim, queridas águas, criei um equilíbrio para que vocês sigam com a tarefa de matar a sede do MUNDO".
Recostou-se ao tronco do velho Angico, coçou deliciosamente a longa barba e cochilou novamente, acordando quando um pequeno raio de sol teimava em penetrar por entre os galhos da frondosa árvore, atingindo-lhe o rosto. Sentindo o calor, foi às águas cristalinas que ainda corriam. Tornou a usar as mãos em conchas, bebericou novamente, molhou o rosto, as longas barbas e voltou para encostar-se no velho Angico.
Observando a intensidade do sol e a

sábado, 28 de novembro de 2015

FUMAÇAS DE LILITH - Conto de M. Luiza Bueno Benevides (Brasília, DF)

FUMAÇAS DE LILITH

Eu estava na varanda, fumando ao ar livre o meu cigarro maldito, quando embaixo, na rua, um casal vindo de mãos dadas rumo à feira, entre tantas pessoas e carros estacionados, chamou-me a atenção.

À direita e à frente, tinham, à igual distância, a benigna sombra que o prédio, em frente, faz sobre a rua ao sol. O rapaz, querendo mudar para o outro lado da rua, puxou a mulher pela mão de maneira abrupta, forte, autoritária, impondo sua vontade sobre a dela. Naquele momento em que se dirigia, serenamente acompanhada, àquela feira vespertina, tão famosa na cidade, a forma como fora puxada pelo companheiro magoara-lhe o braço e o prumo.

Discutiram o caminho. O rapaz, tendo segura sua mão, quer ainda atravessar a rua. Observo que, no ponto em que estavam não fazia muita diferença como alcançariam a sombra do prédio, se pela frente como seguiam ou se pela outra calçada. No entanto, era evidente que, para a moça, o que fazia diferença era a forma de ser conduzida pela mão. Com carinho, com exclusividade, não com sujeição. A força do homem sobre

DO OUTRO LADO DA ESQUINA... - Crônica de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

DO OUTRO LADO DA ESQUINA NO INICIO DO BECO

Desce uma névoa fria e a cidade dorme. Amparados um no outro, os corpos entrelaçados abraçam a criança que no meio deles se aquece. A coberta estreita resiste à tensão da mão que a segura para que as costas da mulher não fiquem a descoberto. Ele precisa protegê-los – a mulher e o filho –  por isso se esforça e leva avante o desafio de sobreviver.

Na rua deserta, só o vento anda. Desliza, esfregando-se das soleiras das portas às pontas das calhas geladas nas quinas dos telhados. Numa dança solitária e voluptuosa a corrente de ar circula, volteia, retorna e quer entrar no pequeno casebre. O homem sente o frio que sopra pelas frestas e aconchega mais o pequeno corpo que choraminga. Estica o braço e ajusta a proteção na tentativa do amparo. No movimento, a cama de ferro ringe. Encontrou-a abandonada na lateral de uma casa de onde partia um caminhão de mudança. Sem uma palavra, mas com um olhar de consentimento e um movimento rápido de cabeça o homem do caminhão passa adiante a velha cama. Proprietário agora, a cama é seu primeiro bem.

A rua sempre o acolhera. E assim foi quando tomou posse do casebre abandonado, em ruínas, meio ladeado no fim beco sem saída. Deitados os três, ele permanece acordado, não quer que ela desperte para a vida de ninharias.  Sem sono, observa o fogo trêmulo e mirrado, entre os tijolos no

CASSINOS - Crônica de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ).

CASSINOS


Alguns lugares são tão emocionantes e fazem a adrenalina se instalar, assim como certas pessoas derramam carisma por todos seus poros. Imagine uma aldeia no deserto que com o tempo passou a sediar um dos locais mais atraentes e instigantes do mundo. Pense num festival de luzes que ilumina ou cintila; crupiês, jogadores e bookmakers; chamarizes, recolhedores de fichas, mesas e máquinas; oxigenação central que injeta ar na medida proporcional do avanço do cansaço, o qual aumenta com o cair da noite, cuja finalidade é revigorar apostadores. Imagine gerentes andando nervosos para lá e para cá e câmeras instaladas por toda a parte. Imagine mais, dinheiro e mulheres bonitas chegando de todos os países do mundo e que se atraem como imãs. Lembre ainda, de banqueiros e dos que pensam fazer fortunas bem como perdedores que não se conformam; no risco e nos jogos de azar sobrevoados pelo diabo que também frequenta a competição. Na margem que a casa tem em todas as paradas e no sangue que fervilha até transbordar logo após o comando que se escuta e se memoriza em seus sonhos ---- "façam seus jogos ... senhores". Julgue a sorte de apostas satânicas ao girar das roletas e moedas tilintando nos caça-níqueis. E cogite da verdade terrível para muitos, que é um sentimento de felicidade maior, ao se ganhar cinco mil dólares em uma aposta do que receber um salário muitas vezes mais expressivo e decorrente de uma atividade laborativa honesta e cotidiana. E se amanhã continuar a pensar assim, compre uma passagem e voe para Las Vegas. Mas nunca se esqueça de que por lá não transitam apenas mulheres sedutoras e ganhadores beneficiados pelo destino. Considere que os demônios também habitam cassinos. Ah! Sim... e boa sorte nas paradas em que entrar!

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

VESTÍGIOS - Crônica de Terezinha Lanzini (Canoas, RS)

VESTÍGIOS


O Paraíso se refaz ao primeiro sopro do alvorecer. Se pudesse descrever esse lugar assim seria: qualquer coisa entranhada no pampa. Aquela superfície verde, tão grande quanto a esperança e a liberdade. Vivo aqui, onde, ao reabrir a janela a cada manhã, vejo a paisagem que amanhece molhada pelo sereno da noite e acena com uma réstia de poesia que se alastra em uma lânguida espiral de luminosidade.

No inverno, surge como um xale branco vitrificado e quebradiço a cobrir os campos e o pastiçal. Quando a primavera chega, é tempo de acordar cedinho. Afasto as cortinas e, através da varanda, vejo surgir as primeiras luzes do dia que, aos poucos espalha sobre a coxilha uma nuance dourada, cor da aurora, que aos poucos toma conta de tudo e desperta a vida. Durante a travessia de meu olhar, me encanta a mistura do verde e do azul, o cheiro da água e o capim surgindo com a transparência.

Olho aquela nesga do outro lado do rio e presto atenção no imenso céu calado sobre o burburinho de vida que fervilha no pampa: canto de cigarras, pássaros que voam de um lado para outro, garças pousadas nos córregos e as

CRÔNICAS DE VINGANÇA - Crônica de Luiz Alexandre Cruz Ferreira (Ribeirão Preto, SP)

CRÔNICAS DE VINGANÇA


Um advogadinho, inimigo meu, viajou para Porto Seguro de férias. Nem bem chegou e, como bom mineiro, foi dar boas vindas às vagas eternas. Depois, sorrindo satisfeito, ali mesmo, naquela areia escaldante, sob a retumbante luz de um sol generoso, olhando para onde os azuis do céu e do mar se misturavam exuberantes, comeu satisfeito um enorme espeto de lustrosos camarões fritos. Duas horas depois foi obrigado a recolher-se a toda pressa ao seu quarto no hotel, tentando durante todo o percurso, sem muito sucesso, dissimular o barulho dos gases excitados que distendiam seu intestino como se estivessem envolvidos em um turbulento e escandaloso motim. Durante quase uma semana, apesar de se alimentar somente de água e Imosec, um verdadeiro Vesúvio de cabeça para baixo cuidava de provocar uma erupção atrás da outra, para a infelicidade de meu desafeto. Obrigado àquela rotina de deitar-se na cama e sentar-se no vaso, o combativo defensor de causas impossíveis se permitiu um momento de distração e, depois de deitar-se no vaso, acabou cagando na cama. Só melhorou da odienta virose no dia de ir embora. Invocado, não querendo dar-se por vencido, resolveu dar um último passeio pela praia com o claro intuito de vingar-se dos invejosos que certamente, mesmo a distância, com seus poderosos quebrantos, acabaram causando seu infortúnio. Trocou-se com cuidado (naturalmente redobrado ao amarrar o tênis), abriu a porta do quarto e no corredor foi surpreendido por uma violenta briga entre um marido violento e uma mulher bêbada que corria, ensanguentada e escandalosa, pelo hotel. Numa sala suja da delegacia local, esperado a hora de ser ouvido como testemunha do incidente, viu brilhar o prateado de um avião sob o pano de fundo de um céu imaculado. Era o seu voo que retornava sem turbulências para as saudosas Alterosas.

PERDA DE TEMPO - Crônica de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

PERDA DE TEMPO

Entramos Uruguai adentro, com destino certo e num ímpeto aventureiro que me acomete mais vezes que deveria sugeri desviarmos o caminho e entrarmos em Montevidéu. O pessoal estava com pressa, mas acomodada na extrema intimidade que me da a permissão para ser chata, insisti.

“Pra que perder tempo?” – perguntavam. Eu repetia que não existia isso de perder tempo, só no caso de estarmos apostando uma corrida a dinheiro e pararmos para amarrar o tênis, se não for algo semelhante a isso, como tirar o pai da forca, tudo é tempo ganho.

 Eu dei as dicas afirmando conhecer bem o caminho. Passaríamos por uma avenida e sairíamos na estrada. Corajosamente, ignoraram minha idiotice geográfica e acreditaram em mim. Fomos parar em um arrabalde sensacional. Fiquei fascinada: cachorros enormes de carona com o dono em cima de uma moto. Um mendigo tocando flauta tão bem quanto eu. Um varal mais alto que um caminhão atravessando a rua sustentando camisas desbotadas, cuecas, sutiãs enormes e lençóis que voavam ao vento morno. Crianças ranhentas rolando na poeira com cuscos sarnentos.

“Onde estamos que não acho a tal estrada? Olha o tempo que estamos perdendo!”

Meus olhos de Poliana deslumbrados com

ENTRE MIL OUTROS - Conto de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

ENTRE MIL OUTROS

Naquele dia, algo diferente moveu-se na contraluz do fim da tarde, hora em que os fantasmas, misteriosamente, tomavam conta da varanda. Não era a brisa de maio sacudindo os eucaliptos que margeavam o caminho, nem sonho, miragem ou fruto do delírio de proximidade que há muito lhe roubara o sono. Apurou a vista em direção ao vulto e de longe reconheceu o passo. Cansada das lições de espera impostas pelo silêncio, correu ao seu encontro. Cerrou as pálpebras e, como cega, tocou-lhe a face com a palma das lembranças. A barba por fazer e os sulcos que o tempo havia desenhado não confundiram as pontas dos seus dedos. Ela o reconheceria, entre mil outros, ainda que mil anos os tivessem separado.

DÚVIDA - Conto de Marcio Estamado (Álvares Machado, SP)

DÚVIDA


Sai a bola da cozinha num zás e o garoto atrás dela, cabelos grudados na testa suada. Estanca; no pátio, tomando chuva fina, o filhote de pardal agoniza. De seu bico mudo saem débeis tentativas de ainda viver. O menino avista, em um dos galhos da pitangueira vizinha, um ninho prestes a desabar. Olha para os dois lados e para o pardal. Ergue o pé. Hesita e neste instante sua mãe o chama para lanchar. Hoje tem biscoito doce e café com leite.

SOBRE INTELIGÊNCIA E LOUCURA - Crônica de Maria Clara Prati (Porto Alegre, RS)

SOBRE INTELIGÊNCIA E LOUCURA

Coisa que me impressiona muito é a glamurização e/ou ridicularização das pessoas que padecem de distúrbios emocionais/mentais. Uma sobrinha da minha vizinha de porta andou interessada por um moço que já foi internado algumas vezes. Chegaram à moça e à mãe da moça ora histórias sobre a genialidade do rapaz em questão, ora histórias sobre seus problemas mentais.
Eu já avisei a minha vizinha que eu acho as duas atitudes ridículas. Quem passou pela vida sem nenhum percalço? Quem nunca sofreu até pensar que estava enlouquecendo ao perder a capacidade de se comunicar com as pessoas que estavam próximas? (Isso acontece muito na depressão). A ignorância é a mãe do preconceito. Nem sei se esse provérbio existe, se não existe, acabei de inventá-lo. Do preconceito mau, porque o preconceito, assim como o colesterol, pode ser bom [fruto do conhecimento] ou mau, fruto das fofocas das vidas minúsculas. O preconceito ruim seria o do mexerico, o “sabias que aquela é completamente louca”? “Sabias que na família dela quase todos têm problemas graves de loucura, e são gênios também, todos são os melhores no que fazem”. Já o preconceito bom seria fruto do conhecimento. Eu conheço através de estudos e leituras uma determinada doença mental, então vou tomar todos os cuidados para não prejudicar determinada pessoa até levá-la a uma crise.
Acredito até que existam pessoas que reúnem um grande problema emocional com um grande talento literário, ou musical, ou para as artes plásticas, para as

domingo, 22 de novembro de 2015

CUCO - Conto de Marcio Estamado (Álvares Machado, SP)

CUCO

Queria que a mulher estivesse sob as rodas da pick-up.Obrigar o velho a ficar lá, naquele fim de mundo, não era justo. Ainda que tivesse abandonado tudo e todos. Minhas irmãs, todas mais velhas, nem se importaram. Disseram que era longe, que o carro iria atolar. Eu, movido mais por curiosidade do que por amor, resolvi fazer aquilo pelo velho. Merecia, afinal.

Por vezes, minha vista nublava-se. Vinham à tona as recordações de uma infância marcada (e salva) pela presença rude, mas inspiradora de meu pai. Nunca fora homem de cultura. Sabia, porém, fazer muito com pouco. Inventava brincadeiras, era criativo, e isso encantava meu mundo de menino. Por alguns anos, minhas tardes reservaram muitas surpresas, engendradas pela mente privilegiada de um simples relojoeiro.

Não eram apenas as lágrimas a turvar-me a visão. Minhas memórias também manquitolavam, num esforço contínuo para encadear fatos e datas.

A solidão da noite foi desvanecendo essas brumas, aos poucos. Mas resta sempre um vazio a ser preenchido. É como se essa lembrança fosse um galho teimoso de árvore, que depois da tempestade pendura-se lá no alto, prestes a atingir o

sábado, 21 de novembro de 2015

O VAZIO AO LADO - Conto de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

O VAZIO AO LADO

Mortas as palavras, garganta seca, restava esperar que a escuridão os conduzisse ao sono. Era quase verão e a desesperança tinha atravessado três estações para chegar ao limite do cansaço. E sendo a realidade das faces comprometedora e demasiado fria, deram-se as costas para o equilíbrio da estranha balança que os sustentava. Já não eram senão o vulto opaco que o tempo tatuara na memória; um copo pela boca à espera da última gota. E o silêncio, a pesar sobre os pesares.


Mas naquela noite, instante suspenso de uma tormenta, algo incomum atravessou os anteparos. Desvelada, a dormência se fez movimento e em busca de trégua, navegou os lençóis. O coração disparou, faltou o ar, sumiu o chão. E como náufragos, boiaram sob o céu constelado em busca de um único gesto que os salvasse. As mãos, até então recolhidas, deslizaram. Pétala de delicada textura, a pele cedeu aos afagos. E o vazio ao lado se dissipou.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

LEITURA DE UM AMOR - Conto de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

LEITURA DE UM AMOR


Certa vez, eram tempos de guerra e eu tinha uma namorada em San Miguel, mas estávamos em Saigon. Um dia, daquela forma clássica, ela revelou outros conceitos amorosos, pois "o mundo havia mudado e as coisas não eram mais como antigamente”, ou ela não era ou nunca foi. Definitivamente, apesar desse mundo infinito, não... não quanto a este tema, pois o amor, em sua bilateralidade, não possui época nem tempo. Não podia me tornar insubmisso à vida que vivi. Muitas vezes nosso olhar se forma a partir de leituras poéticas, conversas filosofadas na adolescência ou, simplesmente, por um filme romântico que marcou nossa existência. Não... não me peça a vida levando para longe as chaves do meu quartel. É que elas servem tanto para abrir quanto para fechar correspondências de amor.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

PARA ONDE VAI O AMOR... - Crônica de Maria Clara Prati (Porto Alegre. RS)

PARA ONDE VAI O AMOR QUE NÃO SE REALIZA?

É muito difícil orientar os filhos sobre relações amorosas. Com o advento da independência financeira da mulher, cada vez menos papai e mamãe sugerem que a filha ou filho termine o namoro com aquele moço ou moça porque não é do mesmo nível social, não vai ter condições de dar o conforto com o qual ela está acostumada, ou, no caso do rapaz, a esposa não vai saber se comportar diante dos amigos dele.

Graças a Deus, porque ainda existem pais que fazem isso, por falta de capacidade de observação já que nas suas próprias famílias devem existir tios e tias que casaram com quem os papais e mamãe faziam gosto e o escolhido se revelou um incapaz para construir uma vida produtiva, enquanto que a filha sofreu muito ao desistir de um namorado de juventude porque não tinha eira nem beira e hoje vê uma amiga com ele, um sucesso na profissão em que pouco a pouco conseguiu se firmar, os filhos tendo acesso às melhores escolas, os melhores cursos, viagens e, o que é mais importante, dando valor para tudo porque sabem que pai e mãe lutaram para conseguir proporcionar aquela vida para eles.

Há poucos dias eu e uma amiga conversávamos sobre a neta de uma conhecida nossa que foi proibida de namorar um moço porque ele não pertencia a uma das famílias mais prestigiadas de Erechim ou Passo Fundo, não recordo a cidade. O jovem era pianista de um conjunto local, não conseguiu ir para a

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O PIANO - Conto de Augusto Cruz (Salvador, BA)

O PIANO

Em Aracaju, na Rua de Estância, quando o ponteiro maior do relógio indica alguns minutos restantes para as 17h, ao invés de as janelas das casas cinquentenárias se fecharem para evitar os mosquitos, são abertas e umas carinhas, de gente mais velha, timidamente aparecem, seguidas de um cruzar de braços e um olhar fixo na janela azul da casa de número 31, bem no meio da rua.

Quase que pontualmente às 17h a janela azul se abre e os rostos ansiosos dos vizinhos dão lugar a faces relaxadas.

Surgem os primeiros acordes de uma valsa brasileira e um “ahhhhh” em algum lugar da rua é abafado pelo som do piano que vocifera sua alegria da janela recém-aberta.

O mendigo Paulão, que habitualmente passa pela rua para receber uma sopa de D. Nazinha, rodopia até a casa dela e abre o sorriso de poucos dentes, muito menos por causa da sopa aguada e muito mais para a música que o arrepia.

D. Irá, D. Nair e D. Marizete, cada uma em sua janela, enxergam os espectros de seus filhos, que infelizmente já enterraram, bailando elegantes no meio da rua, devidamente acompanhados de novas noras e a cada rodada um aceno para a mãe orgulhosa.

Seu Hamilton, um copo de cerveja em uma mão e uma flor na outra, cruza a via pública rindo, assobiando, esquecendo que já morreu há anos.

E os exibidos da casa 27, João e Zuleika, 52 anos de casados e ainda “vivinhos da silva” e

MAMÃE, MINHA BOA CONSELHEIRA - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

MAMÃE, MINHA BOA CONSELHEIRA

Porto Alegre, 12 de junho de 2.020

Amado filho Cristiano:

Mamãe ficou muito triste com tua última mensagem, por isso te escreve ao invés de simplesmente pegar o telefone.
Contas que aos trinta e oito anos cansaste de procurar um amor que te complete, as mulheres não querem compromisso, usam e abusam dos teus sentimentos. Sinto imensamente que assim seja, querido filho, mas devo dizer-te que os homens, através dos séculos, cavaram suas próprias sepulturas. Hás de perguntar-me por quê. Qual a tua culpa em relação ao comportamento das mulheres?
Tu, talvez não a tenhas, mas deixa a mamãe contar o que passou durante a tua infância e juventude. Talvez a história de vida da mamãe, que não é diferente da história de suas amigas, te ajude a meditar sobre esse tema tão difícil que é o das relações amorosas.
Chegou um tempo em que tua mãe cansou de recomeçar infinitas vezes novas histórias de amor com príncipes encantados e passou a escolher pessoas que aparentemente não oferecessem perigo.
Tua mãe era jovem e bela quando conheceu Amaury. Ele era um militante político. Fisicamente ele lembrava uma figura de revista argentina que divertia mamãe na infância: Doña Tremebunda. O homem era de uma gordura descomunal e caminhava balançando a parte traseira como a personagem da charge. Pois não é, meu filho, que ele se considerava o centro dos interesses femininos e relegava esta que te escreve a um plano secundário, dedicando-lhe escassa atenção?
Quando o político deixou mamãe, ela sofreu muito, tendo que procurar auxílio de um psiquiatra para se refazer emocionalmente.
Refeita, tua mãe conheceu um homúnculo de cabelos grisalhos e semi-longos. Mamãe saía com ele fazendo a maior ginástica para não ser vista por conhecidos

NEGO CUNDUNGA - Conto de Jorge Silveira Wernz (Alegrete, RS)

NEGO CUNDUNGA (Campereada 1998)
Rincão de são Miguel e seus personagens

Tez completamente negra, esguio, talvez 1,80m de altura (não sei se por eu ter apenas 9 anos o via tão alto), queixo excessivamente proeminente, dentes alvos, apesar do inseparável palheiro, e um constante sorriso aberto que permitia, mesmo a quem não o quisesse, ver o róseo de suas gengivas, céu da boca e língua. Esse era o "Nego Cundunga", o "Tio Cundunga",alegria do Rincão.
Os 74 Km de estrada do local, por apresentarem horrível trafegabilidade, deixavam apenas o "tilburi" como meio de transporte aos fazendeiros ,nos idos de 1950.Já o transporte de carga era feito pelos carroções do "Nego Cundunga". Mantimentos, sementes, rações e toda a sorte de necessidades chegavam até o fundo do Rincão nos três carroções puxados por quatro cavalos cada um, guiados pela habilidade do "Nego" e seus filhos.
Quando chegava de viagem na cidade, trazia e entregava aos fazendeiros as listas de necessidades, que tinham uma semana ( seu descanso no povo), para providenciar a entrega das mesmas para seu retorno ao Rincão.
Segundo ele mesmo contava, saia de Alegrete por volta da meia-noite, fazendo seu primeiro pouso e troca de cavalos no seu compadre "Tolentino", bem na famosa porteira preta. Dali seus carroções entravam ruidosamente até uma certa altura do Rincão da Palma, o que lhe permitia, falhar um pouso e retornar ao primeiro para seguir viagem, que não era curta.
Uma das paradas obrigatórias dos carroções era na estância São Jorge, de propriedade de meu avô Joaquim Antonio da Silveira de onde não se enxergava a estrada, o que não impedia que os cães de longe pressentissem e acusassem

O VOO DO MARAGATO - Conto de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

O VOO DO MARAGATO

Agripino Saraiva, peão de estância aposentado e maragato flor de guasca, acalentava o sonho de viajar de avião. Nem que fosse uma vez, não queria morrer sem embarcar numa “geringonça daquelas” – como se referia à aeronave. Não tinha medo, pois quem montou em baguais e peleou no ferro branco não poderia ter medo das alturas.

Como todo índio grosso, moldado a facão nas lides do campo, não entendia dessas tecnologias de compras pela internet. Pensava que era só chegar ao aeroporto e comprar uma passagem, como fazia quando queria visitar umas primas em São Borja. Ia até a rodoviária e no guichê adquiria o bilhete. Mas avião era diferente, tinha que ser pela internet.

A solução foi recorrer ao Agripininho – o filho, embora com 28 aninhos, era chamado de Agripininho – que conhecia bem essas modernidades e vivia mexendo num aparelhinho preto cheio de letrinhas. Agripininho levou um susto quando o pai falou que queria viajar para o Rio de Janeiro. Depois dos argumentos que ele não conhecia ninguém na Cidade Maravilhosa e a violência campeava frouxa, bala perdida e sequestros, o velho Agripino mudou de ideia. Iria a Brasília. Novamente o filho argumentou que ele não tinha amigos e nem

domingo, 15 de novembro de 2015

PELAS RUAS - Crônica de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

PELAS RUAS

Estou só e não estou. Ando pela alameda que margeia o rio e a paisagem me retém. Por alguns instantes, sou parte das pontes e das paredes dos velhos edifícios. Numa esquina, um homem magro de olhos profundos traz uma canção do passado – “La bohème, la bohème Ça voulait dire on est heureux” - Sigo cantando. A cidade é imensa e há muito a percorrer. O museu, a catedral, a torre. Encho os olhos nas elegantes vitrines da avenida mais famosa do mundo. O Arco marca o fim do caminho e tomo outra via. A rua vai se estreitando e das sacadas, pendem gerânios coloridos. É primavera e o vento anuncia a proximidade da noite. “Bonjour! Place de Clichy, s`il vous plaît”, digo gastando meu repertório enquanto ajeito o cinto de segurança. As luzes começam seu espetáculo, tudo se enche de brilho. Estou só e não estou... A bordo de um táxi, minha mão se aquece entre as mãos do meu amor.

Paris, 24 de maio de 2015


(publicada no Jornal Leôncio do centro de Letras de Paranaguá, PR)

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

EM TROCA - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

EM TROCA
                                                                      
 Um solzinho invernoso mal aquecia o interior do carro naquela manhã gelada. Foi quando a vi, uma figura apressada e frágil, de ombros arqueados. Parecia mais um risco desenhado contra a luz filtrada por entre as árvores do estacionamento.  Atravessou o pátio e foi em direção a porta principal. Segurava o estômago com uma das mãos e disfarçava o gesto com a bolsa que levava a tiracolo.

Quase na entrada do prédio, gesticulou como quem organiza a fala e se convence de que está pronta para qualquer confronto, mas, se alguém a observasse melhor veria que estava visivelmente abalada. Fiquei imaginando a luta interior e que narrativa a traria ali.

Determinada, foi na direção dos corredores laterais, desviando de um e de outro sem olhar nos olhos dos passantes, não queria distrair-se, pensei, nada deveria interromper o ritmo de seus argumentos, nem fazê-la perder tempo. Engolia com esforço, e na boca seca só aquela eterna ardência que subia e descia sem lhe dar trégua, como o rastro queimado das palavras não ditas. Dobrou mais um corredor, avistou a placa indicativa e um leve tremor a percorreu. Quis voltar, mas apenas diminuiu o andar e, para disfarçar a indecisão, olhou o relógio. Em cima da hora. Dirigiu-se ao balcão e entregou a carteirinha de controle. Ao ultrapassar a porta, leu o painel de informações como se alguém pudesse se perder depois de já ter passado por aqueles caminhos. Preparou-se. Como das outras e de tantas outras vezes, o médico veio ao seu encontro e ela, exaurida, sem nenhuma palavra, foi.             

Do lado de fora, no estacionamento do

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

TIO LAURO - Conto de Jorge Silveira Wernz (Alegrete, RS)

TIO LAURO (PIRAJUANO)
Rincão de São Miguel e seus personagens

Apareceu no Rincão, la pelos anos de 1958, vindo das bandas de São Francisco de Assis, mais precisamente de uma Região denominada Piraju, onde trabalhara com os LEIRIA.

Sua tez demonstrava a mestiçagem de Negro com índio; seu temperamento calmo, excessivamente calmo, e sua paciência com as crianças dava-lhe logo logo, a confiança dos Estancieiros.

Estabeleceu-se primeiramente como agregado, se não me falha a memória na estância que arrendava na época, o Seu Aparício Marques.

Sua montaria, uma égua tordilha que trazia "ao pé" um potro doradilho, frente aberta que ele batizara com o nome de PIRAJUANO em homenagem, talvez, à sua querência.

Com o passar do tempo, descobriu-se que toda aquela bondade tinha o seu tanto de defeito. O Tio Lauro era dado à bebida, e não pouco...

Este vício fez com que ele fosse passando de estância em estância , sendo admitido por todas as suas qualidades e despachado dois ou três meses depois, quando botava a mão nos trocos e "breteava" rumo ao bolicho.

Mais tarde, quando já garbosa e orgulhosamente montava seu pingo PIRAJUANO é que seu nome fez estória.

Com parada certa lá no

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

MEIA-NOITE - Conto de Ricardo Pereira Duarte (Uruguaiana, RS)

MEIA-NOITE


Como era manso o meu cavalo! O patrão sempre se admirou do jeito que eu tratava com ele. Não só de pegar em qualquer lugar que eu quisesse, mas pelos truques que lhe ensinara, como deitar ao lado da cerca e permitir que eu o puxasse pela cabeça e pela cola, arrastando-o para fazê-lo passar por baixo do arame, o que me dava uma grande vantagem algumas vezes, não precisando andar maiores distâncias para achar uma porteira, passando rapidamente uma divisão de campo em caso de urgência.

E outros truques, que só eu sabia e nunca mostrei a ninguém. Mas meu cavalo não se negava de pegar em campo aberto, de dia, ou de noite, que eu o amansara muito bem da minha presença, com mimos especiais de gulodices, sal e açúcar.

Se eu gostava do meu cavalo? Claro que sim!... Bueno! A princípio, nem tanto; mas quando vi que ele se amansava e me podia dar vantagens que outros não tinham, aos poucos fui me afeiçoando, até criar um verdadeiro amor por meu parceiro. Ninguém me daria o que meu cavalo me podia dar.

Parece exagero? Bueno... Eu podia levantar na madrugada sem ninguém notar, chegar até ele, onde estivesse, e, de em pelo e sem freio, montar e tomar meu rumo; passar em qualquer cerca para chegar aonde outros não chegavam. E na volta da empreitada, em lugares desconhecidos, podia pegar meu pingo num potreiro escuro com a maior facilidade e no maior silêncio chegar até minha cama, de volta à estância. Eu o fiz assim. Para minhas noites de escapadas. Não por acaso o chamei de Meia-noite.

O amigo me vê aqui sentado, como um pobre velho, fumando meu palheiro em silêncio, tomando meu mate, engraxando as minhas pilchas como uma posteiro de fundo de campo, e pensa que eu não tenha tido uma vida boa; que estou enrugado da idade e judiado da lida; imagina que a sua vida na

FLORIANO - Conto de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

FLORIANO

Floriano era homem imenso. De ombros largos, voz empostada, cheio de polidez e boas maneiras. Quando estava na cidade, era assíduo frequentador de absolutamente todos os velórios de desconhecidos.  Às últimas homenagens aos conhecidos, ele abdicava, preferindo ficar em seu quarto, nos fundos da casa dos meus avós, bicando uma cachaça ordinária. Fazia questão de usar um português impecável e arcaico e trajar ternos de linho branco e sapatos Bataclã. Aos domingos passeava displicente pelas carreiras de cavalos, gastando todas as patacas de sua parca aposentadoria, e foi lá mesmo que deixou sua sorte, sobrando-lhe do muito que teve, o triste patrimônio de oito hectares de campo duro, um cavalo crioulo e um apêro de prata, fazendo de Marina, minha irmã, sua única herdeira.

Com a perda do campito nas carreiras, a morte do cavalo e o roubo dos arreios, Marina deixou de acreditar na própria sorte, mas não deixou de proteger Floriano dos ataques que sofria da família, que o acolheu por ser sozinho e distantemente aparentado. Não fazia arruaças, mas quando bebia atacava a geladeira e enchia os bolsos de panquecas e bolos de arroz e os escondia n guarda-roupa. A empregada e a família pediam que ele comesse  o que quisesse e a hora que bem entendesse desde que em local apropriado e sem esconder alimentos embaixo dos seus suéteres. Quando o acusavam de estar bebendo muito, Marina defendia seus hábitos atribuindo-os  a alguma deficiência mental, afinal era filho de Leocádio, o homem que só sentava-se à mesa com uma lata de massa de tomate em cada orelha, presas por um arame, dizendo-se o speaker do além. A genealogia de Floriano depunha contra ele.

Quando iam para a estância, levavam Floriano, que se ajeitava pelo galpão. Nada o fazia mudar de ideia, era lá que ele gostava de ficar floreando o português de uma forma tão ostensiva que a peonada só conseguia entendê-lo por intuição. Logo arranjava uns cambichos com as filhas de algum lindeiro e era rapidamente aceito pelas famílias. Tinha conhecimentos significativos de história, geografia e pecuária , e o cuidado de ocultar seus hábitos de prodigalidade e bebedeiras. Meu tio, via em Floriano o alvo certo de diversões sádicas. Sempre que se pilchava a preceito, com

ATÉ A ÚLTIMA GOTA - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

ATÉ A ÚLTIMA GOTA

O suor escorre entre os seios enquanto apanho caderno e caneta para tentar avivar minha memória. São duas da tarde e estou sentada sobre a minha cama. Ontem o gato do meu filho, trazido para casa contra a minha vontade, fez coco neste mesmo lugar. A primeira reação do rapaz foi rir, depois, trouxe o animal e encostou-lhe o focinho na sujeira com uma violência que me fez tremer de medo.

Leandro sempre me assustou com as chegadas intempestivas e os gritos de ameaça. Eu mal respondia, não sabia como agir com ele. Passou a me agredir com tapas e eu continuei desorientada. O dia em que o convidei para ir ao psiquiatra, ele se encaminhou para a cozinha como se não tivesse ouvido, voltou com um copo cheio de água e me jogou no rosto. São raros os dias em que ele não me joga água e não me bate, mas eu faço terapia e tomo medicação.

O gato se enrosca na minha perna. Eu grito de horror. Ele deixa o meu quarto e aproveito para fechar a porta. Odeio pelos, penas, escamas.

Várias vezes tentei ajuda dos meus irmãos, dos meus pais sobre a violência do meu filho. Eles se olham de relance e, afetando preocupação, afirmam que isso não pode continuar. No vidro da porta de entrada do apartamento, por dois anos vi a imagem de uma espécie de índio de feições delicadas. Nos meses de férias de verão estive fora e esqueci dele. Largo a caneta e vou às pressas conferir se ele está lá. Não me abandonou. Ou os remédios não fazem efeito, ou tenho um ser que me protege.

É um dia quente de março e comenta-se que vai esquentar muito mais. O calor desenha figuras nas paredes e no chão. As figuras me tratam como criança: fazem caretas assustadoras ou cômicas. Peço socorro para a minha mãe pelo telefone e ela me pergunta se eu não contei isso para o médico. É claro. Acho que é por isso que ele prescreve tantos remédios.

A agonia de um miado me chama para a área de serviço. O chão está vermelho. Do spot de luz, pende o gato por um cordão de nylon, a língua de fora, os olhos esbugalhados.

A voz empostada de Leandro, entre rindo e querendo assustar, anuncia: a próxima poderá ser você!


Volto para o meu caderno onde escrevi estes segredos e continuarei escrevendo até a última gota, quando serei carregada nos braços do meu índio protetor.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

ANO NOVO - Crônica de José Antônio Marques Fagundes - Tunico Fagundes - (Uruguaiana, RS)

ANO NOVO

Estamos a 50 dias do inicio do 16º ano do século XXI, "la maula" como o tempo voa!

Todos ficam repetindo que os dias atualmente passam com mais rapidez, que antes não era assim, que não temos mais tempo para nada. Verdade ou não, o tempo passa e nessa marcha inexorável, vamos juntos.

Lodo teremos o réveillon oriundo do verbo réveiller ou seja: ação de nascer, despertar, fazer novo, ou simplesmente começar um novo calendário.

Aqui no campo esse período começa em Setembro, tempo de mexer na terra, plantar, acasalar, ver nascer, florescer, germinar e viver!
Nessa data campestre não usamos roupas com cores especiais, não estouramos espumantes, não soltamos fogos de artificio, nos vestimos da roupa alegre do trabalho de quem sabe produzir, nossos fogos são o suspiro de satisfação ao ver o trabalho concluído, nosso espumante é a água pura matando a sede de mais um dia laborioso.

Daqui até Janeiro as luas trocarão de forma 4 ou 5 vezes, os céus estarão cada vez mais límpidos e estrelados ( se parar de chover ), as noites serão agradabilíssimas cheias de bons sonhos. Enquanto escrevo observo alguma estrela cadente e um satélite que passa todos os dias por aqui "camperiando" a imensidão do universo. Fico imaginando as imagens por ele captadas, os sons lá do quase infinito e quem sabe algum ET me espiando "lá de riba"!

Enquanto minha cabeça viaja, vou tranqueando no horizonte entre o verde ondulado e o firmamento infinito, às vezes parece que saio de um plano para outro, como se voasse no tempo que vivo, o irreal fica real e a aventura anda de mãos dadas com a realidade.

Sempre acho que andar pelo campo e escrever tem uma semelhança muito grande, pois entre o que se olha o que sentimos e imaginamos a diferença é, no meu entender, muito pequena.
Há uma linha muito tênue que separa a percepção, a imaginação, a inspiração e a realidade.

Um Feliz Ano Novo a todos os que ousam sonhar e alegrar-se com o milagre da vida! 


Estância Coqueiro, lua minguante de novembro de 2015

MARES PARALELOS - Crônica de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

MARES PARALELOS        
                                                                                    
Uma fina linha d’água escorrega pelo piso em direção ao solado da porta que se abre para o corredor. Ao chegar perto, faz um leve desvio pela inclinação do assoalho e para por alguns segundos – o suficiente para tornar-se mais grossa e densa. Acumulada, impulsiona-se e rola mais para frente. Escorrega, ladeando o rodapé rumo à escada.

Basta olhar bem, para vê-la escapar lentamente degrau por degrau, uma de cada vez até o solo no mesmo ritmo cadenciado. Plaf, fazem. Plaf, plaf, plaf e se aplastam uma atrás da outra. Redondas, brilhantes, inocentes. Algumas gotas menores ficam penduradas na virada do degrau, equilibrando-se até que zupt, empurradas por outras e mais outras, as gotinhas vão,vão,vão... vão escada abaixo.

  A fina linha d’água esforça-se para chegar à porta da frente e sair. Por fim, escapa e desliza na lateral da calçada contra as paredes externas das casas que formam a rua. Corre pelas reentrâncias dos ladrilhos em linha reta. Com atenção poderá ser visto o ziguezaguear confuso nos canaletes só para desviar da língua do cachorro que quer bebê-la, da cama de papelão do mendigo que tenta absorvê-la, da poeira acumulada nos cantinhos das inúmeras encruzilhadas que formam o pavimento da calçada. Pelo caminho, ainda encontra passos apressados e desatentos, o que dificulta segui-la num trânsito complicado.


Um desavisado, dos pequenos detalhes da vida na calçada, sobe da sarjeta e invade a pequena correnteza. Dissipa, dissolve, esparrama, divide, esfacelando-a em mil pequenas gotículas. Mas, num último e derradeiro esforço, aproveitando a ladeirinha que inclina a beira da calçada, reúnem-se outra vez em linha na busca do próprio destino – o bueiro no final da rua. Dali, o rio e finalmente o mar.