quarta-feira, 23 de setembro de 2015

SABER ELE NÃO SABIA - Conto de Dôra Borges (Belo Horizonte, MG)

SABER ELE NÃO SABIA, MAS ERA SÁBIO

João Clementino da Silva, o Doca, vivia distraído em seu mundo - mundo muito seu - e nem se dava conta de que, além do eco da sua voz, atrás do Morro Vermelho, existia uma outra história. Até que um dia começou a pensar sobre outras realidades e quis saber mais a respeito delas.
Toda tarde gostava de passar pelo terreiro da fazenda do seu Genésio e roubar um dedo de prosa.  Cutucava com uma varinha a areia fofa que ficava por cima do chão batido, onde costumava secar o café da colheita e, enquanto conversava de cócoras, fazia contas e desenhos sem nexos, ora seis, ora nove mais dois e proseava com o compadre:
- É, acho que vai chovê inté no finar da semana, acha não Nésio?
-Tarveiz sim cumpadi, as cigarras danaro a cantá estes dias. A bicharada tamém anda meio esvoaçada. Pricisano tá! Meu fejão pode inté perdê se num chuvê logo.
-Tamém prantei um punhado de mio. Tô doido pra mode caí um bucadinho de chuva. Vai sê muito bão sô...

DOCES VELHINHAS - Conto de Julio Damasio (Curitiba, PR)

DOCES VELHINHAS


Ao entrar na confeitaria, vi aquelas senhorinhas, cada uma tinha algo que me tocava. Uma era graciosamente corcunda, a outra tinha cabelos poeticamente prateados. Olharam-me e, com um angelical sorriso, apontaram a chaleira de porcelana com os dedos enrugados. Sentei-me, com as mãos trêmulas consegui segurar e com esforço levar minha xícara de chá à boca. Finalmente, passaria uma tarde com minhas amigas do colégio!

terça-feira, 22 de setembro de 2015

FRONTEIRAS - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

FRONTEIRAS             

Ouviu o apito. Imaginou a corrente de ar espremendo-se por entre os tubos metálicos libertando o silvo agudo que tangeu a noite. O trem entrava na ponte.
Buscou as cobertas trazendo-as de volta até a cabeça. Os fiapos do cobertor roçaram a boca e numa leve carícia desmancharam o sono. Ficou quieta ouvindo o silêncio só intercalado pelo ruído das bielas rugidoras cadenciando o trem cada vez mais longe.
Sentiu vontade de levantar para vê-lo passar na escuridão da noite – uma linha luminosa ultrapassando a fronteira por cima do rio – mas o inverno impregnava o corpo e a cama andava vazia. Preguiçosa, aconchegou-se nela mesma, invadiu suas lembranças e embarcou de vez.
Queria espiar como quando era criança e colocava a cabeça para fora da janela do trem, arriscando-se só para sentir o vento gelando as orelhas e ardendo as narinas. Queria ver todos os vagões nas curvas da estrada de ferro onde numa delas despontava uma cidadezinha, o primeiro entroncamento em que se podia fazer baldeação para outros rumos. Depois, só Santa Maria.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

SEM FANTASIA - Conto de Carlos Emilio Faraco (São Paulo, SP)

SEM FANTASIA

Moeu com todo o cuidado a enorme pedra falsa do anel de casamento, misturou o pó à farinha. O filé à milanesa ficou gostoso
“- Um prato brilhante, Eudaliza!” – ele disse.
A hemorragia começou às 23h, horário de Brasília.

VINGANÇA - Conto de Márcio Estamado (Álvares Machado, SP)

VINGANÇA

Irmã Áurea está sentada à frente do computador. Olha novamente para o texto do anúncio que acabou de digitar.
Vende-se par de alianças 18 quilates. Tratar pelo fone 3569 2495, ou no Convento das Carmelitas, Rua da Tristeza, 105.
Observa também as mãos, ainda chamuscadas, os dedos finos e muito brancos. Seus devaneios são interrompidos pela voz rascante da madre superiora.
-Se já concluiu, retorne para sua cela. E reze. Reze principalmente para que Nosso Senhor a perdoe e para que consigamos o suficiente para a restauração. Está dispensada.

Irmã Áurea sai da sala, lentamente. Lança o último olhar de ódio à imagem de Santo Antônio, em madeira talhada. Nos braços e rosto do santo, um negrume de carvão.

UM VULTO NO MAR - Conto de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

UM VULTO NO MAR

Era uma vez e ainda menino, numa cidade do interior, quando Habib um vendedor na feira, de cabelos negros, olhos arregalados e rosto de árabe, oferecia umas caixinhas coloridas.
- O que está à venda? – perguntei.
- Ilusões... cada caixa tem uma bolinha açucarada e colorida. Trazem lindos sonhos.
Não era caro e comprei, tomando uma para adormecer mais tarde. O que vi então foi inexplicável. Uma linda mulher saindo do marulhar das ondas, com um andar sereno e a silhueta reverberada pela luz do fim da tarde, que ofuscava seu corpo quase nu. Vinha sacudida por arrepios provocados pelas carícias das águas. Fiquei extasiado e de repente acordei daquele mundo que não imaginava fantástico mas real.
A partir dali Habib desapareceu e nem consegui retomar aquela aparição que me envolveu para sempre em paixão, ternura e saudade.

CALLE BALCARCE - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

CALLE BALCARCE

Un café con crema, por favor. Consigo imitar a fala deles para o garçom. Mesas sob as árvores que separam as cafeterias, toalhas, guardanapos, de pano, a água gelada que acompanha o café, em copo de cristal. Discretos vestidos de verão em tons pastéis, cabelos brilhosos, perfumes suaves.
Nem vestígio de carnaval em pleno mês de fevereiro. Eu não sou uma foliã, mas em Florianópolis sempre tivemos bailes animados, muito porre, muita gente de fora. Otávio não quis esperar uma semana, tinha de mostrar interesse pelo trabalho, não era qualquer um que conseguia um cargo na embaixada sem ter passado pelo Itamaraty. (Quem conseguiu foi o meu pai, digo aqui com os meus botões). Faz três dias que chegamos e só hoje reagi: se tenho de ficar alguns anos, vou ao menos retomar minhas caminhadas. Parques não faltam em Palermo, mas creio que estou em outro bairro. Caminhei quilômetros.

NÃO ME TOQUE - Conto de Maria da Graça Rodrigues (Porto Alegre, RS)

NÃO ME TOQUE

- Saia daqui, Dorival. Não me toque, nunca mais. Nem depois que eu estiver morta! Não permitirei que você conduza sequer uma alça de meu caixão!
E Dorival, obediente como ele só, roçava com a pontinha dos dedos os fios compridos da cabeleira rebelde da ex-namorada.
Pecador confessava-se arrependido pela asneira cometida num momento de cegueira.
Diante daquele júri implacável, por quem fora condenado sem direito a apelação, perguntou a meia-voz:

- Que faço com o estojo de veludo onde guardo duas alianças? Pretendia, justo hoje, surpreendê-la. Eu e você, para sempre, só nós dois e ninguém mais.

CAVALGADA - Conto de Roberto Schmitt-Prym (Porto Alegre, RS)

CAVALGADA

Sente a brisa no rosto, fecha os olhos e se vê num campo, galopando em vertiginosa correria. O entusiasmo o leva para longe, por paisagens inimagináveis.
Subitamente o cavalo é detido em sua marcha e ele tem de voltar de sua fantástica viagem que chegara ao fim.

Ainda não está parado totalmente, mas o menino coloca os pés no chão e corre alvoroçado na direção da mãe. O que ouve são os ruídos do último giro do carrossel.

SEM SANGUE - Conto de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

SEM SANGUE – o degolador [*]

Sem Sangue chimarreava, pensativo, ao pé do braseiro.
Lembrava, com os olhos fixos no encarnado das brasas, os tempos de combatente. Quando gurizote peleou na Revolução Federalista de 93. Era o ordenança do coronel maragato Adão Latorre. Naquela campanha foram responsáveis por mais de 300 degolas de pica-paus. Naqueles tempos, como dizia a música, “prisioneiro era defunto e se não fosse era exceção”.
Foi num dia muito quente no lugar que ficou denominado como Potreiro das Almas lá para os lados de Bagé. O guri era conhecido pelos rebeldes por João Faz Tudo. Ele que amarrava os prisioneiros deixando pronto para o Adão Latorre. O guri era um mandalete dos maragatos sendo prestativo nas degolas, zombarias e humilhações de pica-paus. Depois de um certo dia, passou a chamar-se João Sem Sangue e, logo em seguida, apenas, Sem Sangue. Na maioria das vezes tinha olhar parado e gestos lentos. Diante de tamanha selvageria no ato da degola Sem Sangue permanecia indiferente. Calmo e frio como se estivesse pitando um palheiro feito a capricho ou salgando uma costela gorda com respingos de salmora. Agia com frieza e com a maior naturalidade, inclusive, quando o primo Juan – do lado chimango e mais castelhano da família – implorou pela vida. Sentindo o calor da adaga de Latorre no pescoço fez sua derradeira solicitação.

O ÚLTIMO MASCATE - Conto de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

O ÚLTIMO MASCATE

Em um entardecer para fora, ouvi o barulho longínquo das rodas arrastadas de uma carroça, vi ao longe o vagar do cavalo e o chapéu preto e de abas largas do seu cocheiro, em pé. Cada vez mais se aproximava atiçando a cuscama, cruzou a porteira, as casuarinas, vinha com rumo certo, ao passar pela varanda da casa cumprimentou com uma leve levantada na aba do chapéu e do galpão a voz do capataz: -O mascate!
Mascate? Mascates apareciam quando eu era criança, era raro, mas ele vinha e vinha carregado de pequenezas inúteis que ganhavam ares de formosura no fundo do campo.
Corri com minha irmã até a carroça, não estava cheia como nas minhas lembranças. Tinha cadeiras de armar, panelas de ferro, aspirinas e meus olhos encantados deitados nas mercadorias e nas mãos calejadas do comerciante dos bretes. O cheiro do fumo, as palhas do palheiro, as pitocas enfiadas em bainhas novas, cheiro de couro, e um destoante e cafona tapete zebrado que por um triz não desmanchou meu encanto.

AMIGAS - Conto de Paulo Ras - (Paranaguá, PR)

AMIGAS

- A Arminda ainda tem a alma juvenil.
- Pois é... Uma jovem de noventa anos.
- Dança, brinca, dá risadas, anda de bicicleta...
- Fôlego de criança...
- Desde quando conhecemos ela?
- Faz uns oitenta anos.
- E ela sempre do mesmo jeito... Linda
- Até a cara...
- Pois é... Parece a mesma mocinha... Um doce...
- Ortomolecular...
- O que?
- Tratamento...
- Mas a cara...
- É plástica...
- E muita...
- Assim até eu...
- E eu também...
- E ela sempre foi exibida...
- Roubou meu primeiro namorado...
- O meu também...
- Safada...
- Verdade... Continua a mesma... Uma velha sirigaita...
- Lembra que ela pulava a janela de casa para encontrar o namorado escondido?
- Fez isso até depois de casada...
- Cretina...
- Nunca valeu nada...
- Aquela carinha de santa...
- Por isso que apelidaram de Fogueteira... Quietinha, mas quando acendia o pavio... Era o que diziam...
- Assanhada...
- Cachorra isso sim... Lembra do primeiro marido?
- Se lembro!
- Manso e rico...
- Essa nasceu com sorte...
- Verdade...
Silêncio.
Arminda pula a janela.
Sai sorrateira.
- Lá vai ela... Pensando que é menina ainda...
- Quem?
- A Arminda!
- Quem é essa?
- Esquece...
- Do que?
- Da Fogueteira... Mas o enfermeiro pega ela antes do portão... Safada... Sempre pulando a janela...
- Eu queria ter pulado a janela quando era criança...

- Eu também... Pena que a minha sempre foi muito alta... Pena que a minha eu sempre deixei fechada...