sábado, 10 de outubro de 2015

AMANHÃ... SEM FALTA - Conto de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

AMANHÃ... SEM FALTA

Todo dia, quando descia do ônibus, ele a observava de longe.  Ela atrás do balcão, lenço no cabelo, boca pintada, mãos cobertas de anéis e pulseiras e o sorriso de orelha a orelha que não saía da cara. Nem parecia a mesma. Com ar de proprietária, dava ordens às atendentes e depois voltava a folhear uma revista, esquecida de tudo que tinham vivido. Era uma Ingrata! Como podia tê-lo trocado pelo turco do armarinho? Logo ele que em todos aqueles anos a cobrira de dengos e trabalhara duro pra manter seus luxos. Contava os trocados para flores em datas especiais, economizava no cigarro para leva-la ao cinema, bancava jantar no bar do Bolão uma vez por semana, com direito a jarrinha de vinho e taças de vidro, tudo conforme ela gostava. Voltava a pé do trabalho para trazer “diamante negro” com o dinheiro da passagem. Lavava panelas, limpava banheiro, dava de comer aos gatos e depois a amava como a uma rainha.  E nada era o bastante. Emerenciana sempre queria mais.

Quando ela se foi a casa restou vazia e a vida perdeu o sentido. Nem os gatos ficaram. Decidiu então que queria morrer. Pensou em se enforcar, enfiar uma faca no peito, se jogar na frente de um trem, mas desistiu. Como suportaria o sofrimento se algo saísse errado? Tinha que ser um tiro certeiro. Mas de onde tirar uma arma? Se pedisse a alguém, desconfiariam e logo viria a turma do “deixa-disso”. Roubar, não tinha coragem. Deitado sozinho na bagunça da cama tentava achar solução. Estava difícil até para morrer. Estendeu a mão, acariciou o vazio no travesseiro dela e limpando uma lágrima resmungou: “amanhã sem falta eu subo o morro, Emerenciana... Lá, se não vier bala de um lado, é certo que vem do outro”.   

HISTÓRIAS DE AMOR... - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

HISTÓRIAS DE AMOR EM DIA DE CHUVA


Saio dos sonhos para digitar um poema. Palavras, frases, ideias correm na chuva, Se apresentam e tentam me invadir. Quero falar que todas as histórias de amor são ridículas, já que não se escrevem mais cartas. Desisto. Quem sou eu para brincar com versos de Pessoa? As minhas foram, penso. Estou condenada a não falar sobre elas? Me acodem versos musicados pela chuva. O primeiro me chegou como quem chega do nada. Perfeito, ninguém descreveria o que aconteceu comigo. Me entusiasmo e começo a cantar a história do segundo, do terceiro. Ouço a risada da irmã do Caetano. Ela começa a cantarolar Chico Buarque. Ele também já brigou com ideias e compôs a música inspirada na cantiga de rodas. Para ele, os versos chegam de mansinho. Não se atrevem a invadir como quem chega do bar. Comigo é assim, as imagens não deslizam, elas resvalam e são levadas e lavadas. Mas eu tive histórias de amor, todas ridículas, me parecem, nas primeiras horas da manhã. Se não fossem ridículas não seriam historias de amor, suspiro, enquanto digito neste iPhone que muda as palavras que escolho. Mas a chuva cai mansa e me recupera da luta. Hoje pegarei de jeito um poema. Ele há de vir rolando sobre os telhados que avisto da janela de meu quarto.

A TERCEIRA MARGEM... - Crônica de Dôra Borges (Belo Horizonte, MG)

A TERCEIRA MARGEM DO RIO
(Inspirado em “A Terceira Margem do Rio” de Guimarães Rosa)
                                                                                      
Cá estou, no meio de um rio, numa canoa sem remo...
Meu pensamento, meus desejos ou meu sonho hão de me levar para uma das margens, mas ainda não sei quem me conduzirá. Em meio à minha dúvida, olho para trás e percebo o quão distante está o cais de onde parti; mal posso enxergar as árvores frondosas, de raízes grossas que ficaram daquele lado. Voltar não seria uma boa opção. Sei bem o que encontrar nesse caminho, pois já o percorri e nada mais tenho a me motivar além de lembranças de lugares e momentos que não mais serão revividos. Então procuro olhar para frente, tentando vislumbrar a outra margem, mas não consigo ver claramente a distância que ainda tenho que percorrer para chegar ao meu destino.

O azul claro do céu é espelhado na imensidão das águas límpidas. Algumas nuvens flocos de algodão espalham-se pelo horizonte, além da Serra da Saudade, de onde o sol nasce como que suspirando de satisfação por mais um dia de luz. Apesar da beleza indescritível dessa cena, sinto medo.

Há um desafio muito grande à minha frente e eu não consigo sequer entender o seu propósito. A minha grande sorte é poder ter contado com a calmaria das águas.  Ainda assim, eu não posso me acomodar, pois as pequenas ondas, por certo, irão me levar rio abaixo se eu não me decidir rápido. Algo tem que falar mais alto dentro de mim. Estou confuso, muito confuso.

PAPO MARGINAL... - Conto de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

PAPO MARGINAL OU NECROLÓGIO ÀS AVESSAS DE UM MALANDRO DA ANTIGA.


Mané abotoou o paletó. Tinha uma diferença pra tirar cum os home por causa de um banho que deu numa parada errada. Pensou que tava dixavando. Só que a estória do berro que ia usar mixou e ainda tomou um balão apagado. Medrou. Pior que baratinado, jogou um xaveco, levou uma dura e deu o serviço. Depois que o pássaro cantou se meteu numa confa, tirou uma xinfra, tomou um sarrafo e quase levou um teco. Muito antes tinha sido um babaquara e vacilão. Andava sem babilac, portava trabuco mas num tinha ameixa e sempre fugindo do meganha. Na ronda não passava de um galo. Cansou de dar bandeira quando ia afanar. Vivia gamado e cheio de atraso por bandida de tabaca bonita, mas na hora de trocar o óleo só arregava bafo com papo de araque, aí se mandava pro samba da Vila pra colar com jaburu. Pura forçação de barra. Mas conseguiu, na noturna, uma vagaba bacana que perdeu pra curriola. Dançou porque gostava de um bordejo e só andava com as mina da boca marcando presença, nunca dando adianto pra ninguém. Não era de truta. E se fosse apertado logo batia a língua sem arriar cascata pra se dar bem. Nunca foi da política e por isso tomou chute quando esteve na tranca. No bolso só micharia de dar pena ao cana na hora da geral. De uma fase pro fim já andava morgado e churreado. Fumava simidão e pedia as vinte na maior. Um dia ganhou na loteca, comprou uma máquina e turbinou uma banca. Tava mais que manjado, levou chumbo na luneta e morreu com a burra cheia. Mané era um Zé otário. Morô... meu chapa! Mas enquanto viveu... curtiu o maior barato.

MICROCONTO DE CINEMA - Microconto de Carlos Emilio Faraco

MICROCONTO DE CINEMA

Jurou que era melhor que Babette, aquela da festa. Mas ninguém percebeu que o terceiro prato ainda miava.

SOZINHO-ME - Crônica de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

SOZINHO-ME

Por trás da cortina espio a rua na hora do desbotar do sol. Em cima da cama as folhas amarelecidas escorregam da pasta, nelas, a escrita de traços firmes guarda as lembranças trançadas de um tempo que tive à disposição.

Há poucos dias li que havia uma vantagem em saber esperar sem esperança, porque é esperar sem dor. Por isso deixo-me estar ali, confinada em minhas memórias. Os filhos aparecem e se revezam, mas não lhes dou mais tanta importância.  Já lhes dei o melhor de mim.

Guardei as cartas todas que recebi, num fundo falso de uma das gavetas do pequeno oratório. Ali mesmo, bem abaixo do nariz da família e de todos os santos de minha devoção. Só eles sabem onde elas estão. Não perdi a fé, só o rumo do coração. Sei que devo desfazer-me delas enquanto é tempo, mas sem vontade ou coragem, ainda não... 

Na companhia das imagens sagradas, no canto do quarto, puxo a cadeira para bem mais perto e, como quem busca ombros para escoar as falas, leio baixinho os secretos relatos dos encontros fortuitos que tivemos naquele longínquo verão. Eu era só uma menina.

Vez ou outra eu vigio a porta do quarto e, como quem pede desculpas, abaixo a cabeça. Gosto desse lugar mais do que qualquer outro da casa. Os olhos vitrificados de cima do oratório têm um modo especial de me escutar. Na relação com meus santos, eu encontro uma porta invisível e para ela sou convidada.  Atravesso e sozinho-me.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

TALES E ELA - Conto de Danelize Martins Gomes (Uruguaiana, RS)

TALES E ELA

Tales era menino mirrado, mijado pela mãe e cagado pelo pai. Vivia pela rua tipo bicho, correndo de um lado pro outro. Num dia almoçava na casa da avó, noutro pernoitava ao lado da tia. Olhava os outros com olhos esbugalhados, sorriso amarelo e uma barriga cheia de fome.

De manhã, devorava pão com manteiga, um copo de leite e se vestia com a roupa que tinha. Só encontrava sossego no colégio. Entrava na sala voando. Sentava na última fileira, quase agarrado pela parede. Imóvel permanecia até a chegada dela. Quando apontava na porta, era um desnorteio só... Ela com aquele ar suave que mudava a expressão desorientada daquele guri e enchia de brilho aqueles olhos estralados.

Tales prestava atenção em todos aqueles movimentos. Percorria com o pescoço os vai e vens pela sala e se perdia naquele balanço. Para ele, era o embalo mais bonito que já tinha observado.

Atento, se desprendia de conversas e do auê dos colegas. Se comprometia a copiar o roteiro escrito no quadro e terminar o mais ligeiro possível seus deveres. Quando terminava, eis que surgia a hora mais eufórica do dia.

O tal instante em que ele atravessava toda a classe e chegava perto da alongada, rodada e azul, saia da professora. O menino suava frio por entre os dedos, prendia o caderno contra o peito, como quem transportasse um tesouro e sofria por aproximação. Seu tema pronto era a desculpa para poder contemplar a beleza daquela saia delineada pela cadeira. A correção pouco o importava, do sorriso da professora, ele nem lembrava. Tales queria mesmo era morar embaixo da barra daquela saia para sempre... (ou até quando tocasse o sinal).

A MENINA DO ESPELHO - Crônica de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

A MENINA DO ESPELHO

Dei pra falar sozinha. No início achei normal. Sentava na cozinha em um cantinho da mesa de onde, através dos copos de vinho da cristaleira, me cabia um pouco da própria imagem no espelho. Depois comecei a desconfiar que estivesse virando rotina, portanto, não era lá muito normal. Preparo meu café, sento, olho para o espelho e falo tudo o que penso de mim para mim mesma. É um sintoma, percebi, não sei se de solidão ou de escandalosa autossuficiência.

Minha imagem não me rebate, não magoa, não me ofende. Nosso encontro já é um ritual. E um ritual que me golpeia com uma saudade imensa da minha mãe. Nós brigávamos muito e sempre. Nós nos magoávamos mutuamente e nunca, nunca nos pedíamos perdão na típica forma de pedir perdão. Nossos perdões eram velados. Discutíamos ao meio dia assombrosamente e ao entardecer eu telefonava perguntando se ela queria assistir a novela comigo. Ela sempre queria. Ou ela batia na minha porta perguntando se eu queria os mamões que ela trazia nos braços, recém-colhidos. Eu nunca gostei de mamão. Mas sempre queria. Em poucas horas estávamos sedentas pela companhia uma da outra. Cumprimos até o final esse ritual, que estranhamente, nunca nos pareceu doentio.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

QUERÊNCIA - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

QUERÊNCIA

Uns tempos atrás, escutar a canção Negrinho do Pastoreio era, principalmente, recordar a bela voz que a interpretava, agora só em discos de vinil e talvez em um ou dois CDs. Seu intérprete mais divulgado, Leopoldo Rassier, vencedor de vários festivais nativistas, partiu faz alguns anos.

Barbosa Lessa, o autor, deixou mais de sessenta trabalhos escritos entre romances, poesia, livros de folclore, composições. Vivia e criava, segundo ele próprio, num lugar que nem sítio era, um pedaço de mato, cercado de lagos para dar de beber aos beija-flores.

Num painel psiquiátrico sobre depressão, um dos painelistas valeu-se da notícia da morte do compositor para deixar sua mensagem aos telespectadores: “Negrinho do Pastoreio, acendo esta vela pra ti e peço que me devolvas, a querência que eu perdi”. A depressão, segundo o psiquiatra, tem muito a ver com as perdas sofridas, especialmente aquelas ligadas à infância, à família, às expectativas , enfim, à querência de cada um.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

NINGUÉM ESCAPA - Crônica de Marga Cendón - (Uruguaiana, RS)

NINGUÉM ESCAPA

A mocinha da loja dirigiu-se a mim com um sorriso inocente: “a senhora está procurando alguma coisa especial?” Olhei para os dois lados e para trás. Ninguém.
Num primeiro momento pensei em sair e entrar de novo. Depois, em sair e nunca mais voltar. Pensei até em perguntar: “isso é comigo?”. Mas apenas retribuí o sorriso e com a voz abafada respondi: “Só estou dando uma olhadinha, se precisar eu chamo”. Foi tudo que me ocorreu para afasta-la. Precisava ficar sozinha, recuperar o fôlego e engolir o que acabara de deixar por terra a visão que eu tinha de mim até então.
“Senhora”, eu?! 
As pernas pesaram, os braços caíram, e minha imagem encolheu-se diante do enorme espelho da loja. Estabeleceu-se um impasse e minha identidade corria sério risco.  
Imediatamente trouxe à memória situações semelhantes relatadas por amigas e duas ou três crônicas que eu havia lido sobre o mesmo assunto e que, na ocasião, me pareceu um descabimento. Achei que quando chegasse minha vez eu tiraria de letra sem o menor drama. Mas não foi bem assim. Eu ainda não estava preparada.
Sai disfarçadamente sem comprar nada e fiquei andando pelas ruas para assimilar o trem que acabara de me atropelar.

Mais tarde e já mais calma, entrei num café, chamei o garçom e antes que ele abrisse a boca fui logo dizendo: “moço, por favor, um carioca duplo”. De moço ele não tinha nada. E, juro, minha vontade foi pedir uma vodca.

A METAMORFOSE - Conto de Márcio Estamado (Alvares Machado, SP)

A METAMORFOSE 
(UMA RELEITURA EM BREVES LINHAS)


Em uma manhã ensolarada de inverno, um inseto despertou lentamente de sua letargia. Mas percebeu-se diferente. Tinha apenas quatro membros. Estava em posição fetal, no canto de um grande pátio. Tentou arrastar-se, o mais rápido que podia, para trás de um carregamento de tijolos. Desajeitado, bateu a cabeça. Ao se erguer, sentiu pender-lhe dentre as pernas o membro flácido. Olhou para aquele órgão estranho, rodeado de pêlos. De uma janela do prédio ao lado, uma senhora gorda, com um pano na cabeça, pôs-se a gritar. E por uma dessas coincidências trágicas, agentes da lei passavam por perto, naquele instante. Algemaram o homem, que até tentou protestar; mas para quem, até a noite anterior, pertencera à classe Insecta, tal ato mostrou-se inviável. Foi jogado, nu como estava, em uma cela com outros de sua nova espécie. Morreu semanas depois. Não sabia comer outra coisa além de migalhas.