sábado, 17 de outubro de 2015

DE CÃES E ÉBRIOS - Conto de Cícero Silveira Christino (Alegrete, RS)

DE CÃES E ÉBRIOS

Ia negociando noções de equilíbrio com a parede, ao caminhar. Completamente bêbado. A roupa suja, o cheiro a vômito, a ardência na garganta. A personalidade em trapos. Limpa, apenas a memória, mas, ainda assim, lhe rondava uma sensação desconfortável de que algo voltaria a atormentar, de que a trégua se iria junto com o porre.

A noite era úmida, mas, não chovia. Ao passar, a caminho de casa, pelos bares mais badalados, do centro da cidade, começara a ouvir os risos e gritos debochados proferidos pelos jovens boêmios. Riam, apontavam, detalhavam seus destroços como se ele os desconhecesse. De repente alguém gritou, às gargalhadas:

– Não se sabe quem é o cachorro ou quem é o bêbado!

Foi somente aí que ele percebeu a presença do cãozinho que o seguia. Era baixinho, de cinzentos pêlos crespos, rabo levantado e orelhas caídas. Fugia de qualquer padrão racial.

– Deixa de andar com este animal… – bradou um gaiato, prosseguindo após uma breve pausa: – cachorro!

Todos riam. E todo este riso,

NÃO ENCONTRAMOS NINGUÉM - Conto de Vera Ione molina Silva (Uruguaiana, RS)

NÃO ENCONTRAMOS NINGUÉM

Ela nos convidou para o almoço e deu uma lista dos ingredientes. Prepararia um prato gostoso para os dois amigos especiais. Cada um com suas compras, deixamos o supermercado e nos dirigimos para o edifício.

Tocamos a campainha muitas vezes. Vimos um vulto se esgueirando pela área de serviço.
Meu amigo olhou para mim e, esmurrando a cerca, vociferou:


— Isso não se faz. Ela é que nem o Arnesto.

CHEGADAS E PARTIDAS - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

CHEGADAS E PARTIDAS

Preciso ir, mas não sei bem se quero. Culpo a inércia que me invade e assume minhas decisões, orquestrando a vida minha como se fosse alheia. A minha. Tem tanto poder esse estado de apatia, que assume ser a protagonista maior, nunca a consequência, acessório simples de um momento. Racionalizo para me salvar e me perco. Simples assim. Culpa, há nisso? Medo. Uma ansiedade torturante me invade e recuo covardemente. Observo-o de longe sem que me veja. Do outro lado do vidro, a vida inteira à disposição de um só futuro. O meu, o nosso. Arrisco, e num gesto abrupto levo a mão à maçaneta e rompo o imobilismo que me assola. Pelo vão da porta aberta, atravessa o som da última chamada. Em pé, no saguão do aeroporto, ainda me espera. Apresso o passo e ele anda em frente, correspondendo à voz do embarque. Nem uma vez mais olha pra trás. Desistiu, desistiu… desistiu de mim, de nós. Chamo por ele, mas uma horda apressada se interpõe e, os vários portões internacionais dão vazão às viagens, a outras histórias e seus personagens. Abro a bolsa de mão para procurar o pequeno pedaço de papel onde anotei o número do voo e o local do embarque. Apresso o passo, já não o vejo mais. Caminho quase que na ponta dos pés, esgueirando-me dos grupos para avistá-lo por cima dos ombros da multidão que se multiplicam. Nada, não vejo mais nada. Devagarzinho, vazios cada vez maiores tomam conta do saguão. A maré de passantes turbulentos evapora-se. Ficamos eu e aqueles espaços ocos dentro e fora de mim, insuportáveis, carregados de arrependimento e saudade. Nada, não vejo mais nada, nem mesmo o vulto ao meu lado que baixinho me diz – Não consegui embarcar sem você. 

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

GUARDIÃ - Conto de Ricardo Fabrício Martins Bastos (Santa Cruz, RS)

GUARDIÃ

Já se vão dez dias que só chove. Era mansa no começo e foi aos poucos escurecendo o tronco dos dois cinamomos próximos à porteira. No chão, apesar de não ser outono, um tapete amarelado de folhas cruzava a cerca e se estendia até quase o brete de cascalho avermelhado. Era uma boa estrada, nunca se ouvira falar de carro atolado. Não fosse a água da sanga, logo ali embaixo, ter crescido até não dar mais passo, o ônibus ainda viria. Mas já no quinto dia de chuva Isabelita esteve plantada do lado de lá da cerca até depois das sete e nada da condução. E lá ficou, com seus cadernos escondidos sob a capa de encerado amarelo, até que João Domingo, mangueando umas vacas, por ali cruzou e a mandou de volta. Enquanto não chegava à porta da velha casa em meia-água, franqueada por uma grossa parede branca há muito devendo uma pintura, manteve a esperança e o olhar mirando o rumo do brete. Mas, durante muitos dias ainda, nada sobre rodas viria daquele lado, ou de lado algum.

O fio de água que descia das telhas às vezes mermava, às vezes engrossava em frente à janela onde Isabelita passava as horas que abundavam e aborreciam a sala. No sopé da coxilha, a mesma estrada e adiante, campo e mais campo, salpicado aqui e acolá de uns capões, ora de mato, ora de eucalipto. Por vezes eles sumiam no aperto da chuva, ou se enfumaçavam na neblina de um breve estio. Naquela mesma bruma, ela tinha uma distante lembrança de seu pai inclinado sobre o cavalo para abrir a porteira sem apear. Era um homem corpulento e muito metido em

AMOR SEM FIM - Conto de Margarete Hülsendeger (Porto Alegre, RS)

AMOR SEM FIM

“Que queres que te diga, além de que te amo,
se o que quero dizer-te é que te amo?”
Fernando Pessoa

Há mais de três horas ele permanecia com a arma apontada para a cabeça da mulher. Mais de três horas. Dentro da casa o silêncio era completo, mas ruídos vindos da rua deixavam claro que algo fora do normal estava acontecendo. Sirenes. O som de pneus freando. E, principalmente, o burburinho constante das pessoas que, do lado de fora, aguardavam ansiosas o desfecho do que parecia ser o capítulo final da sua novela favorita.

O homem se mexeu acomodando melhor o corpo na cadeira. Assustada, ela instintivamente se retraiu. Ele a olhou com um misto de raiva e tristeza.

- Já falei que não precisa ter medo. Não vou te machucar. – E numa voz mais baixa disse - Eu te amo.

A mulher não respondeu. Quando ele chegou, derrubando a porta e gritando feito louco, ela pediu calma e até misericórdia. Sem dar ouvidos as suas súplicas, ele a esmurrou, jogando-a com força contra a parede da sala. Enquanto tentava se proteger, colocando os braços na frente do rosto, ele repetia o tempo todo que a culpa era toda dela. Naquele momento só conseguia sentir dor e medo e seu único consolo era saber que as crianças não estavam em casa.

- Eu te amo – ele voltou a dizer.

Muda, ela apenas moveu a cabeça concordando. Não adiantava explicar que o amor tinha acabado há muito tempo. Não adiantava falar, o máximo que ia conseguir eram mais chutes no seu corpo já machucado. “Graças a Deus os meninos estão longe deste inferno!”, repetia silenciosamente.

A TRANSGRESSÃO DO AMOR - Crônica de Dôra Borges (Belo Horizonte, MG)

A TRANSGRESSÃO DO AMOR

Quando eu era criança a gente não falava de amor. Meus pais eram muito ocupados para falar. Apenas sentiam. Sentir não tomava tempo. Podia-se sentir, imaginar ou sonhar qualquer coisa enquanto se capinava uma roça ou amassava uma fila de queijos. Também, para que falar de algo tão difícil de dizer?

Então eu cresci e precisei aprender sozinha. Romântica ao extremo, mas comedida por defesa, eu acreditava mais em sapos do que em príncipes. O que me proporcionou muitos desencontros pela vida afora. Mas isso não vem ao caso. O assunto em pauta é: o que é o amor para mim, para você, para o João, para a Maria, os meus pais, o mendigo, a prostituta, o palhaço, o padre, e até para a bailarina...?

O amor não dá mesmo para definir, cada um tem a sua própria loucura... Você, eu não sei. Mas o João, quem sabe ama a Maria, que não consegue esquecer o Pedro? Meus pais? Acho que me amam assim como ama toda a sua numerosa prole, até a quarta geração, de onde espiam para trás à procura do começo. O mendigo, com certeza ama sua liberdade. Ele sim sabe o que é o amor. A prostituta ama o perfume daquele cara legal que a tratou bem num programa inesquecível. O palhaço, decerto ama o sorriso das crianças que o faz esquecer as suas próprias lágrimas borrando a pintura do seu rosto, logo após o espetáculo. O padre?

VOVÓ VEIO MORAR CONOSCO... - Conto de Vera ione molina Silva (Uruguaiana, RS)

VOVÓ VEIO MORAR CONOSCO E VÊ COISAS QUE NÃO ENTENDO

Ela entrou no meu quarto, o dedo apontando para mim, olhos escancarados:

- Duplas de Pedro e Paulo em todas as esquinas do quarteirão, um federal do outro lado da rua. Eu enxergo longe, a mim você não engana.

Segurei os fones de ouvido, chamei minha mãe e narrei a cena. Ela tomou a vó pelo braço e, com voz compreensiva, começou a falar:

- Calma, mamãe, acho que não é nada do que você está pensando. Se for, eu tomarei providências.

Sempre achei minha avó estranha. Sandálias rústicas, saia longa estampada, bata e colares de contas miúdas. No quarto, um pôster daquela mulher de oclinhos redondos e cabelos crespos que tem a voz mais triste do mundo.

Arrumei minha bolsa para a academia, tomei uma vitamina com todas as frutas que encontrei em casa e peguei o elevador.


Perguntei ao porteiro se algum Pedro ou algum Paulo tinham perguntado por mim, ele disse que não.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

ALZIRA - Conto de Paulo Ras (Paranaguá, PR)

ALZIRA

- Corno! Corno! Você é um corno, Peixotinho!
- Cala a boca, Alzira!
Os gritos ecoavam pelo pequeno prédio. A cena já estava feita. Peixoto descontrolado. Alzira nua. E o amante trancado no banheiro.
- Você é uma desclassificada!
- E você um frouxo!
- Você é a mãe dos meus filhos! Porra Alzira!
- Por isso você virou corno Peixotinho! Eu quero ser fêmea.
Atônito o marido arregalou os olhos.
- Vou soletrar para você: F-Ê-M-E-A! Entendeu? Fêmea.
- Mas eu sempre pensei que você queria ser mãe, Alzira!
- Porra Peixotinho! Que mulher sonha em ser mãe, ficar embagulhada e nunca mais ter sexo na vida?
Ele fez menção de responder. Foi bruscamente interrompido.
- Não venha me dizer “Mamãe, Alzirinha!”. A bruxa da tua mãe é uma amarga e foi corna durante 30 anos. O safado do teu pai morreu em um motel barato com duas putas de beira de estrada.
Quis levantar a mão.
- Bate corno. Bate e depois vai correr para chorar no colo da bruxa.
Furioso foi para cima dela.
- Vai. Bate em mim Peixoto. Faça alguma coisa de macho nessa vida. Mas bate com vontade que eu adoro apanhar.
Ele foi baixando a mão lentamente.
- Mas você é um frouxo mesmo, Peixotinho.
Alzira se levantou da cama. O corpo arrepiado. Os bicos dos seios denunciavam a excitação. Ela virou e mostrou a bunda para o marido.
- Está vendo essas marcas de dedos? Foi o meu macho que fez. Tatuou esse tapa em mim, Peixoto. E eu fiquei louca.
O amante começou a rir no banheiro.
- Cala a boca, Clarício. Você é outro frouxo. Isso quem fez foi o Tião Mão de Onça. Eita homem com H maiúsculo.
O amante ficou quieto.
Ela virou para o

AS CONVERSAS EM MESA DE BAR... - Crônica de Sergio Medeiros Rodrigues (Porto Alegre, RS)

AS CONVERSAS EM MESAS DE BAR EM QUE MUDÁVAMOS O MUNDO

As diferenças entre as atuais conversas de bar e as conversas que muitos de nós, das gerações pretéritas – anos setenta e oitenta -, entretínhamos, são enormes.
Mudanças que ocorreram em um mundo em franca ebulição, em que se mostra relevante o impacto da idade e a mudança de hábitos e modo de vida moderno.
Uma breve contextualização. A vida moderna.
Hoje, comumente, a conversa de bar, quando se dá entre homens mais velhos, meia idade (40 - 50 e poucos), versa, quase que exclusivamente, em relação as mulheres conhecidas ou, nem tanto, divide-se entre, as que comeram, as que atualmente comem, ou as que estão em seu imaginário, para comer (algo estilo filme b – comédia - e a aí comeu??)... a conversa se repete com variações nos mais diversos ambientes e gêneros, agora as mulheres também comem com naturalidade, e repetem o mantra, recheado de fantasias sobre academias e detalhes da nova forma de encarar a vida, antes reprimida...
E nada muda, mesmo em ditos lugares diferenciados tematicamente, ou mesmo com pessoas com interesses diversos dos acima... aí muitas vezes piora... porque surge a autoridade da informação rasa (internet jornais revistas) em contraste com a evidente falta de cultura que sustente ou possa sustentar uma opinião – não digo válida, porque todas as opiniões são válidas, até as mais disparatadas – mas uma opinião que tenha alguma substancia, que agregue algo útil ao debate em si mesmo, e que não seja útil apenas no

PELEIAS - Conto de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

PELEIAS

Zeca Diablo ajoelhou-se diante do córrego para matar a sede.
Vinha de uma longa jornada de cavalgadas e peleias. No último combate contra as tropas de Amaro Missioneiro – um Pica-pau das bandas de Santiago – havia sobrevivido por conta de muita sorte. Nem sabia explicar como estava ali diante de uma límpida água corrente. Seus companheiros de embate haviam sido mortos ou estavam dispersos na pampa. Alguns se bandearam para o Uruguai na tentativa desesperada de salvar a própria pele.
Sentia-se salvo por aquelas paragens que mal conseguia decifrar por conta de uma noite montado no tordilho. Naquele amanhecer avermelhado vislumbrou um capão de mato, uma sombra para descanso e, quem sabe, uma água corrente para saciar a sede. Cavalo e cavaleiro estavam exaustos.
Mas uma dúvida corroia-lhe a mente. Quando fugira do embate, o irmão estava numa luta feroz de adaga com Amaro Missioneiro. Ouviam-se os berros e tilintar das adagas no entrevero – faíscas de ferro branco – e balas de espingarda quando perdera o irmão de vista. Será que o velho João das Chilenas havia sido abatido pelos capangas de Amaro? Ainda retumbava em seus ouvidos os balaços desferidos pelo bando de Amaro Missioneiro e rogava aos céus por ainda estar vivo e ter encontrado uma sanga para se refrescar da cansativa noite de fuga. A emboscada dos chimangos havia exterminado as tropas de João das Chilenas.
Agora, Zeca Diablo estava ali com o rosto no riacho, todo estropiado, sorvendo a água límpida da sanga e sem saber por onde andava e o que sobrara da tropa dos maragatos do irmão João das Chilenas. Acocorado na beira do riacho se refrescava. Então sentiu um gelado cano de revólver na nuca. No reflexo da água pode ver a cor do lenço branco do homem que apontava a arma.
– Tu és irmão do corno João das Chilenas? Vire-se para ver o verdadeiro Diablo.
Zeca levantou lentamente e encarou a figura de Amaro Missioneiro. Não teve muito tempo para pensar. Nas peleias de 24 conversava-se pouco, se atirava bastante e se degolava demais.
Um estrondo de arma de fogo, novamente, zuniu em seu ouvido. Um silêncio no capão depois de uma revoada de cardeais. Mais um gaúcho morto pela luta fratricida. Amaro Missioneiro tomba sobre as águas do riacho com um tiro certeiro no peito. Cai de costas alvorotando os lambaris.

– Nesses tempos de peleias, tem que ter mais cuidado... Diablito – João das Chilenas falou sorrindo.

OFERENDA - Microconto de Maria da Graça Rodrigues (Porto Alegre, RS)

OFERENDA

Ofertou flores, espelhos e rendas em troca de amor. O mar devolveu. Se jogou inteira. O mar serenou.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

NO MEU TEMPO - Crônica de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

NO MEU TEMPO

Algumas gerações cresceram nas ruas tranquilas de antigamente. Depois chegou a época dos malandros de playground, que desciam até as áreas de lazer dos edifícios para compartilhar vivências. Posteriormente surgiu o menino de quatro paredes, vidrado no game e a sete chaves, na clausura imperceptível representada por seu quarto de sonhos virtuais. Uma secreta aliança com a negativa do diálogo ao vivo e universal. Passaram a viver pela voz da máquina fria e sem interrupções ou indagações, para não falar em contestações ou colóquios, onde o sangue quente das palavras faz o coração bater na réplica imediata dos argumentos e no ensaio do crescimento intelectual ao vivo. No meu tempo, como se alguém pudesse lhe inventar a posse, não havia celular, ipad, iphone, play lll etc. mas se jogava bola de gude, abrindo-se búlicas na terra, futebol nos campos de grama, soltando-se pipa a cruzar no ar. O papo era batido a noite e nas esquinas debaixo dos postes de luz. Frequentando-se, ainda adolescentes, as livrarias onde eram lidos prefácios, imediatamente, de obras pelo circundar de livros à disposição nos locais magicamente iluminados pelas cores e pela atmosfera de cultura existente.

E na minha época, como se eu não tivesse mais cronologia, portava-se ainda, um radinho de pilha, "Speack," e de alta tecnologia ...mental, que nos dava condições de ouvir incontinenti as notícias que corriam pelo Brasil e no mundo. E ligava as pessoas à esperança de coisas que já aconteciam a galope. Era, depois do jornal, o meu clarinete diário emitindo sons e chiados em descompasso que pareciam uivos em busca da razão vigente.

PARA LER MATEANDO - Crônica de Tunico Fagundes (Uruguaiana, RS)

PARA LER MATEANDO

O campo amanheceu vestido de prata, provocado pelo sereno grande que aos poucos vai brilhando aos raios da aurora surgindo no horizonte. O campo florido e enfeitado ondula com a brisa que nasce junto com o sol.

Sob meus braços sinto a sensação fresca e macia da badana de capincho. O cavalo encilhado "mosqueia" alguma mutuca madrugadora enquanto move-se trocando de posição. Debruçado sobre os arreios, troco ideias com meu filho a respeito do serviço que vamos realizar, enquanto esperamos o momento de montar e sair com os campeiros para mais um dia de trabalho.

Olhando o horizonte verde que se perde ondulado a minha frente penso, quantas vezes que já repeti este momento em minha vida galponeira. Quantas vezes ao redor do fogo do galpão, enquanto o mate passa de mão em mão e um costilhar de borrego pinga graxa no fogo, comentamos serviços a fazer ou analisamos os já feitos.

Os esteios do velho galpão são testemunhas de várias gerações que por aqui passaram, já escutaram causos e lorotas de gauchadas e patacoadas, que na verdade são normais no dia a dia das estâncias.

O espinilho estala no fogo,

domingo, 11 de outubro de 2015

DESAPEGO - Crônica de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

DESAPEGO

Não sou organizada, mas adoro limpeza. Não saio limpando a casa alucinadamente, aliás nem me movimento muito para isso, graças à Deus tenho a Vera há muitos anos que faz isso pra mim. Mas às vezes sou tomada por um surto assustador, abro gavetas, tiro tudo de dentro, limpo com pano encharcado no álcool e depois no amaciante.  As gavetas ficam cheirosas, seco a umidade na sacada, dobro todas as roupas, separo remédios  e coloco todos na mesma caixa. E a pior parte: abro as gavetas dos papéis, que desespero! Ali tem tudo: bulas de remédios, resultado de exames, provas das crianças de 2010. Desenhos, anotações, listas de supermercado, santinhos de vereadores e santinhos mesmo, com novenas atrás, fotografias, saquinhos de papelão, recibos antigos, contas de luz, moedas, um brinco sem par, chaveiro, óculos com aro quebrado... Mas por que raios eu não boto fora na hora o que não presta?  Não adianta, eu guardo e depois enlouqueço para por tudo no lixo.

A alma fica leve, parece que um peso saiu do quarto, da sala , do banheiro. Ah, sim, porque eu reluto muito em jogar no lixo os frascos de shampoos vazios que ficam no Box, e os hidratantes que acabaram, as acetonas, os condicionadores vencidos. Minha mania de guardar, guardar, guardar. Mas essas coisinhas eu até ponho fora sem maiores dramas.