sábado, 24 de outubro de 2015

PARTILHAS - Conto de Cícero Silveira Christino (Alegrete, RS)

PARTILHAS

De costume, Seu Valério levantava por volta das cinco. Fazia fogo, mesmo no verão. Tomava seu mate até pouco antes das seis. Levantava do cepo rudimentar e começava seu serviço.  Alimentava os cavalos da cocheira, depois os outros animais do terreiro. Caminhava disposto até o paiol, e da tulha de milho pegava o alimento para as galinhas. Lançava os grãos dourados ali mesmo, da porta alta do paiol. Logo em seguida distribuía a quirela para os pintos. Neste meio tempo, algum jovem peão, como ele, sem infância, montado no petiço de piquete, trazia os cavalos de serviço para a mangueira. Todos os trabalhadores tomavam café preto com bolacha besuntada de manteiga caseira para logo colocar o freio, cada um em sua montaria, e abraçar o serviço de campo. Mas, isso foi antes.

Agora, depois da morte do patrão, nestes dois meses que correram, os herdeiros conseguiram demitir todo o pessoal que ali labutava, com a exceção única de Seu Valério. Com certeza ninguém sofrera tanto a morte do estancieiro quanto ele. Muito mais que pela mudança de rotina. Muito mais que pelas cismas. Suas lágrimas foram o epitáfio mais sincero. Fora dele o ombro amigo, quando o filho mais velho do patrão deixara esta terra, há cerca de cinco anos. Tanto quanto o mesmo enviuvara, um ano após a morte do filho. Eram grandes amigos, desde que chegara à estância. Naquele tempo os meninos também gostavam dele. Era como um irmão mais velho. Ajudava a encobrir as “artes”, encilhava cavalo para todos. O único

NÃO ACREDITO EM BRUXAS - Conto de Maria da Graça Rodrigues (Porto Alegre, RS)

NÃO ACREDITO EM BRUXAS

Seria aquela uma boa notícia? Ivana tinha dúvidas. E o apartamento pronto e decorado? E todos seus planos para depois de casada que incluíam Porto Alegre?

Analisando bem e friamente a promoção de Pedro Ernesto para a capital paulista era uma bela notícia. Mas como pensar na vida em São Paulo de uma hora para outra? 

— Ivana, que cara é essa? Uma promoção sonhada por qualquer executivo da idade do Pedro!   Talvez você consiga uma transferência para acompanhar seu noivo. Se não der, poderá se dar o luxo de ser só dona de casa. E dona de casa rica, daquelas que podem passar o dia fazendo compras, indo à ginástica, ioga, salão de beleza e fazendo chás para ajudar as crianças pobres e não precisar mais ralar todos os dias traduzindo documentos e cartas chatas atrás desse computador. 

A amiga tinha razão. E além do que, tinha certeza que seria feliz em qualquer lugar do mundo, desde que fosse com ele, Pedro Ernesto.

— Está bem, Carol, cedo aos seus argumentos, mas agora me dê licença, tenho que traduzir esse contrato antes do meio dia.        

Celular na mão,

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

SERÁ QUE CHOVE HOJE? - crônica de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

SERÁ QUE CHOVE HOJE?


Toda vez que encontro meu vizinho de oitenta e tantos anos, ele pergunta: “como o calor está lhe tratando?” e eu respondo: “bem, seu Justino. O calor sempre me trata bem”. E logo ele engata um “enfarruscou lá pras bandas do Uruguai, quem sabe chova ainda hoje” – mesmo que o sol esteja rachando. Nas outras estações, a mesma pergunta e a mesma resposta. Não fosse isso, talvez ele não encontrasse o caminho para uma abordagem e oportunidade de contar-me histórias dos tempos de antigamente que os parentes já não têm paciência de ouvir. 

Se existe algo tão infalível para puxar conversa, eu desconheço. Fala-se do clima em filas de bancos, pontos de ônibus, táxis, salas de espera e até no boteco onde compro cigarros. Lugar comum na falta de assunto e um meio poderoso de fazer contato com quem sequer precisamos saber o nome. É simples e todos sentem na pele. 

Comigo sempre funciona. Na falta de coisa melhor, escrevo sobre o tempo e seus destemperos; ventos escabelando árvores, alvoroço de passarinhos antes da tempestade, chuva fina na vidraça, o calor de janeiro. Queria ser como seu Justino e ter sempre histórias bonitas dos tempos de antigamente, mas às vezes falta-me “el hilo de la madeja” no encontro das palavras. Nessas horas, abro a janela, espicho a vista pelas lonjuras e pergunto a mim mesma: “será que chove hoje?”.

REFLEXÃO - Crônica de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

REFLEXÃO


Era uma vez um satélite que girava em torno da terra. E depois uma história que não acabou porque não tinha fim. Foi assim, de passo a passo, remarcado, que lembrei de ti - inundação sempre presente. Veio a noite e o instante delirante não se construiu. Um menino jogava bola no quintal ao lado. Abri os braços para o mar em direção aos lugares do céu. Tudo imensidão! Penetrei no labirinto e cantei a canção do Minotauro. Grécia perambulante, adormeci nos braços do continente. Fazia frio, muito frio - meu coração envolto em um cobertor estava só, extremamente só. Desatinos libertinos, alvissareiros, procuravam rimas e não encontravam pares. Foi quando surgiu uma estrela no céu deserto e quase ninguém viu. Achei desde então que era tudo muito belo. O desencontro, a procura, o encontro. Era! Tirei a fotografia da luz e fiz a revelação nas trevas. Tudo tinha sentido, tudo tem. Irregular o formato da bica que pinga o barulho eternidade. Continuei a correr os rios de setembro, com a diferença da motivação maior que me invadiu. Foi aí que verifiquei que estava lúcido, impressionantemente lúcido e dizia tudo isto por que tenho apenas a dizer que a vi. Tu corrias de braços abertos e tuas vestes esvoaçavam levemente. Fazia um vento medido para a ocasião. Eras muito bela, de uma postura inconfundível. Tua imagem se aproximava e me preenchia uma sensação de calma. Só então percebi que tu sorrias, mas eu sonhava!

FEBRE - Conto de Paulo Ras (Paranaguá, PR)

FEBRE

Tirou o termômetro da axila. 39° C. Meio do caminho entre o céu e o inferno. Um aumento de uns 8% na temperatura e pronto. Meninges afetadas e uma hipertermia maligna. Quentura. Mal-estar. Sozinho na casa quase ampla começou a se preocupar.

“E se aumentar? Quem vai me ajudar? Preciso achar o celular, deixar aqui do lado... nunca se sabe...”.

Deitado no escuro. Silêncio da noite. Voltou ao termômetro. 39,2°C. “Quem pagará o enterros e as flores se eu me morrer de amores...”. Adorava o poema, mas aquela não era a hora mais oportuna. Cobriu o corpo. Tremia. Calafrios. Tinha tomado remédio há pouco tempo. Teria que esperar.

Mais dez minutos. 39,4°C. Já dá menos que 8%. Daqui a pouco meus órgãos vão começar a cozinhar. Quem vai me levar para o hospital? E se eu ficar internado, alguém vai se preocupar com a minha quase morte, o meu quase adeus?

“Da garrafa estilhaçada no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa que é leite,

ESPERA - Conto de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

ESPERA

As criadas faziam sabão com graxa de ovelha, mas só serviam para lavar as roupas, depois eram perfumadas com essência de lavanda trazida esporadicamente pelo mascate Taulfo. Depois as roupas eram estendidas nas pedras para quarar. Taulfo cruzava a porteira com a carroça lotada de fazendas, talcos, pós de arroz, Água Java, Leite de Magnésia e sabonetes Lady. Estes sim, finos, vindos de longe, serviam para o banho dos patrões. Alice, Tereza a Amélia davam gritinhos enquanto separavam todos os produtos de toillete. Seu Antônio e Francisco se interessavam só pelo fumo e pela erva argentina. Corina, a empregada era quem lembrava das ervas para o chá calmante de dona Joana, que depois da morte do filho se desinteressou pelo mundo, pelo feitio dos vestidos das meninas e até pela transmissão do Repórter Esso. Corina misturava ao chá o Regulador Gesteira para amenizar a artrite e a tristeza. Ela o sorvia com o olhar perdido. Seu único interesse era se chovia ou não, se estava ventando ou esfriando como se isso pudesse fazer diferença na sua vida limitada as paredes azuis – hortênsia do amplo quarto da estância onde passavam os meses de inverno , só voltando para a cidade quando os campos se enchiam de marias -moles e florzinhas lilases e cor-de-rosa.

A cidade tinha o glamour das confeitarias, das colunas sociais, das fofocas do

CORRIDA DE TÁXI - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

CORRIDA DE TÁXI

Entrou no táxi falando no celular com uma amiga que a aguardava. Estava atrasada. Tentou dar o endereço, mas foi interrompida pelo taxista.

– Que perfume bom!

– O senhor acha? – respondeu distraída. – Não, não acho, senti.

Surpresa, ela resolveu olhar o motorista que a observava pelo retrovisor e que, até então, havia passado despercebido. Indicou o endereço num tom de voz neutro. Aquele que as mulheres usam quando pretendem manter a distância. Não queria dar entrada e muito menos ser grosseira, afinal não tinha certeza sobre o propósito do comentário.

– Então, aonde vamos? – perguntou novamente, agora virando o corpo e olhando direto para ela. A inflexão da voz e um leve trejeito no canto da boca o traíram e deram a ela a medida exata da sua primeira impressão.

– À Rua Marquês do Herval, 641 – respondeu com a mesma entonação inicial.

ENXURRADA - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

ENXURRADA

Caminhando sobre folhas amarelas, debaixo de uma chuva fina e fria, bateu à porta um homem de cabelos loiros, olhos verde furta-cor, lábios desenhando um sorriso de criança feliz, os dentes brancos e parelhos. Alexandre da Macedônia? O Grande? Não, simplesmente Alexandre de São José dos Ausentes, professor de Filosofia, dizia ele. Nosso primeiro candidato a inquilino sorria, mas estava preocupado. Havia a história de Josefina, uma cadela por dar cria, e um prazo para deixar o lugar onde ele estava mal acomodado. Ele foi embora porque o quarto não era como esperava e fomos acometidas de uma ansiedade intensa. O homem tinha de ficar aqui, quem sabe até para a cachorra nós encontrávamos um lugar na área coberta, ou no banheiro de empregada. Passamos a reconstituir passo a passo nossa conversa com ele e combinamos que na manhã seguinte o procuraríamos na escola.

Na próxima noite, ele começava a trazer as roupas, de tão feliz por encontrar pessoas que aceitavam a cachorra dele. Na primeira viagem, veio um anjo enorme, colocado entre os nossos cristais: era de uma semelhança muito grande com a nossa primeira visão mística. À mão do anjo, um candelabro com três velas brancas. Uma para cada um de nós, ele tem um papel em nossas vidas, pensávamos.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

MILAGRES EXISTEM?! - Conto de Maria de Lourdes (Pelotas, RS)

MILAGRES EXISTEM?!

Sempre trabalhei 60 horas. Trabalhar até a exaustão era tudo que eu queria, procurava demorar muito para chegar em casa, diferentemente de todos que anseiam pela volta, para mim, a volta para casa sempre era dolorosa.

- Onde estava até essa hora? Com amante? Não me respeita mais? Só anda com mulheres que não prestam! Boa companhia não eram. Essas perguntas sempre ficavam sem respostas, pois sabia que se argumentasse seria pior.

E, geralmente era muito pior! Havia momentos que a loucura era tanta que, ao chegar em casa, à noite, encontrava os portões com cadeados. A dor de me sentir expulsa, na rua, a mercê de qualquer coisa, me fazia entrar em pânico. Procurar ajuda? Jamais! Abrir e contar meus pesares para amigos e parentes? Nem pensar! Em cidade pequena a vida privada, em segundos, torna-se o assunto predileto de toda a comunidade. Amigos? Como confiar algo tão sinistro? Pai, mãe? Jamais levaria tal preocupação para eles, embora eu desconfiasse que eles sabiam muito mais do que deveriam.

E a vida continuava como num filme de terror. Perambular pelas ruas, dormir nos fundos da casa, ou na calçada, com a alma encolhida e a autoestima no chão sob os pés, tornou-se um hábito difícil de suportar. E durante o dia precisava fechar tudo isso numa gaveta, guardar a

O HOMEM QUE INVENTOU O INCENSO - Conto de André Bolívar (Porto Alegre, RS)

O HOMEM QUE INVENTOU O INCENSO

A situação que descreverei parecerá hoje em dia completamente absurda, mas de fato aconteceu, exatamente como a relato.
Estávamos no início dos anos 70, isto é 1870, e eu andava fascinado pelos encantos de uma virgem chamada Eleonora. Tinha ela cabelos loiros cacheados que roçavam-lhe os ombros. Tinha um olhar farto de meiguice e inteligência e eu admirava-lhe as coxas grossas e os pequenos seios redondos. Eleonora possuía cultura espantosa para uma jovem da sua idade, isto é, dezoito anos. Isto bastaria para que eu ardesse rapidamente, mas acima de tudo sabia recitar os versos da poetisa francesa Marlenne Ducha, considerados os mais belos do mundo, e recitava-os em solíricos!
Explico: virgem era a pessoa que não mantivera contato carnal com nenhuma outra, portanto solteira. Chamavam-na pura, imaculada. Se durante uma festa, ousasse a virgem encarar um rapaz, era obrigada a casar ou seria expulsa de casa, se sobrevivesse à ira do pai; dificilmente casaria pois um rapaz da sociedade não gostaria de ver o bom nome da família atirado à lama por causa de uma vagabunda.
Como deixei claro no início, a coisa pode soar absurda, mas falo de uma época em que pedia-se “por favor” para que outra pessoa nos alcançasse o pote de manteiga, não bastava mexermos o queixo na direção do que queríamos, seguido de um resmungo inaudível como é hábito hoje em dia. Qualquer esbarrão na rua que não viesse acompanhado de um “perdão, cavalheiro”, provocaria um duelo supervisionado por padrinhos.
Explico: “por favor” era como nos dirigíamos às pessoas quando necessitávamos delas. Perdão era uma forma solene de pedirmos desculpas. Algo como o “ôpa” que usamos hoje em dia. Porém, naquela época esbarrado e esbarrador pediam perdão ao mesmo tempo, inclinando os

A VIDA NO FINAL DOS SONHOS - Conto de Sergio Medeiros Rodrigues (Porto Alegre, RS)

A VIDA NO FINAL DOS SONHOS

Um homem caminha na rua.

Um homem, que alguém desavisado daria por perdido na rua, de repente sorri, um simulacro de sorriso, quase um ricto facial, algo indefinido, mas que, ao se reparar no intenso brilho que perpassa seu rosto neste breve instante,  poderia traduzi-lo como o lampejo de uma antiga esperança ou apenas a expectativa nervosa diante de um destino inevitável.
...
Chego a esta casa. Não lembro quando aqui vim a primeira vez. No entanto, agora já me habituei, afinal quase tudo na vida consiste em repetições, até quase não notarmos a diferença entre esta casa, estes móveis, esta vida e as outras. Na realidade, nesses momentos não me lembro de outras casas ou de outras vidas que tenha tido. Sempre que penso em mim, me vejo neste sobrado. Mudam somente as cores, a idade, são sempre as mesmas pessoas, o mesmo cenário.

Subo a escada, e ao subir carrego junto comigo a sensação estranha de estar indo a lugares cada vez mais altos, mas ao invés de me dar medo, essa perspectiva me encoraja e ao mesmo tempo me causa um certo aperto no peito, pela repetição de uma rotina, pois ao final fica sempre um vazio, fruto do resultado de nunca se chegar a algum céu ou terraço inesperado, lugar onde eu iria, enfim, encontrar a redenção ou apenas respostas, ainda que simples.

Assim, não sem hesitação, detenho-me no segundo piso e dirijo-me a antessala, que logo após, dá lugar a uma sacada.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

DESEJOS VELADOS - Conto de Dôra Borges (Belo Horizonte, MG)

DESEJOS VELADOS

Aquele poderia ser mais um final de noite comum, de uma sexta-feira qualquer, como costumava acontecer na vida de Epaminondas, um advogado aposentado, sério e sem muita conversa. Mas o acaso tratou de mudar o rumo da rotina que tornava a vida dele e de sua esposa Emerenciana, um tanto previsível.

Era quase meia-noite e o casal voltava de táxi da apresentação da orquestra sinfônica estadual, que inaugurava um espaço cultural na capital onde moravam. Para chegar em casa pelo caminho mais comum, passavam por uma avenida onde era “ponto” de prostituição. Lugar de pouca vergonha, como dizia injuriado Epaminondas sempre que se deparava com uma das profissionais fazendo abordagem na janela dos carros que paravam no sinal e, não raro, até no carro dele.

Epaminondas dirigia com desenvoltura o seu carro sedan, mas para os passeios com a esposa, preferia pegar táxi a se aborrecer com a procura por estacionamentos nas disputadas vagas do centro da cidade. Por essa razão, acomodava-se no banco da frente e nem precisava ensinar o caminho ao taxista, já que sempre usava o serviço do filho de um amigo, que lhes servia quando precisavam. Era um rapaz de meia idade, apessoado, e com um humor refinado que, vez ou outra, conseguia arrancar uma gargalhada do Sr Epaminondas.