sábado, 31 de outubro de 2015

UM NOVO GÊNESIS - Crônica de Sergio Medeiros Rodrigues (Porto Alegre, RS)

UM NOVO GÊNESIS

No princípio havia apenas Energia.

E uma imensa massa sólida de matéria bruta.

O tempo e o espaço como medida, ainda não existiam, habitavam a matéria.
...
Somente uma forma una e multifacetada habitava todo o éter.

Uma Energia pura, simétrica, sem arestas, equilibrada e infinitamente harmoniosa, preenchendo a insondável e ilimitada abstração primordial.

Apenas energia e aquela massa escura, composta de matéria sólida, bruta.

Opostos em sua essência, como a dualidade dos seres.
...
E quis a energia, ser também matéria, e quis estender a harmonia a esta coisa escura e inerte chamada massa sólida.

Eram infinitas dimensões paralelas.

A energia de infindáveis mundos, com várias vertentes, e a massa, única ainda a ser moldada e ainda presa a apenas uma dimensão.
...
E, no início deste idílio, desta fusão, deu-se o que chamamos big bang, a grande explosão que formou o Universo – tal como hoje o conhecemos.
...
E tem início a criação deste novo lugar, a abnegação do Espírito ínsito a energia, antes sem substância concreta, apenas abstração e força,  em harmonia, energia sem parte sólida, a

QUANDO SOAM AS HORAS - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

QUANDO SOAM AS HORAS

Saturnino Câmara, vinte e seis anos, solteiro, desempregado, cor parda, natural de Uruguaiana, domiciliado na rua Desembargador André da Rocha, número 8, apartamento 44, nesta capital. O comissário interrompe a datilografia, o homem é muito confuso, melhor retirar a filiação e os dados restantes da carteira de identidade.

O interrogado veste camisa de flanela marrom, desbotada, calça cinzenta em tergal lustroso, cinto de couro gasto, as iniciais SC na fivela dourada, calçados Passo Doble. Só responde o essencial. Há quatro dias na cidade, não conhece ninguém. Se arrepende por ter falado demais na terceira noite em Porto Alegre. Vai contar desde o começo.

Primeiro dia. Chega à estação ferroviária ainda de noite. Toma um ônibus para o centro. Desce numa praça, uma sacola de curvim marrom contendo muda de roupa, três carteiras de cigarro, um radinho de pilha, avios de mate e uma faca Coqueiro do velho Saturnino, avô dele. Com um papel escrito por um conhecido, pede informações até dar naquele endereço da André da Rocha com a Lima e Silva, em cima do açougue. O quarto é de fundos, pequeno, não tem janela, mas pode deixar a porta aberta. É um domingo fresco e seco. Passa o dia lendo anúncios de empregos. Serviço de pedreiro é com ele mesmo. Quando o pai vendeu o bolicho ele já tinha coisa de dez ou onze anos. Foi trabalhar em obra, carpiu terrenos, transportou mudanças, fez todo o

ALTERIDADE - Conto de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

ALTERIDADE

Henriquinho ou como preferiam alguns, Riquinho, filho da classe intermediária e matriculado no ensino médio, com louvor nas provas escolares, resolveu abandonar os estudos, apesar de toda a contrariedade familiar. No entanto, jamais deixou de cumprir com seus deveres paroquiais, comparecendo a todas as celebrações dominicais e participando da organização dos encontros de casais que ocorriam na matriz. Diziam naquele paroquiato que ele guardava um segredo a sete chaves, mas que havia perdido uma delas e não muito distante estava de se tornar um verdadeiro homem-bomba. Isso era rebatido, sem dó nem piedade, com relação às más línguas, pelo vigário-geral Monsenhor Castellucci, um dos fundadores do culto cristão naquele local e que lá estava comparecendo com assiduidade. Ocorre que para isso quase ninguém ligava pois não passava, segundo voz corrente, de intriga da oposição, já que o esbelto sempre andava em boas companhias.

Chavequeiro-mor, galanteador apaixonado, exímio conquistador, eram essas apenas uma parte dos adjetivos maliciosos a ele atribuídos por uma parcela menor dos membros daquela sociedade, a qual sequer executava, segundo a freqüência repetitiva dos fieis mais herméticos, uma décima parte da atividade laboral de Henriquinho, efebo dedicado e probo que sempre enxergava a vida com bons olhos. Ainda mais, tendo largado a justeza de suas atividades preparatórias na escola municipal para dedicar-se inteiramente à religiosidade. Circunspecto algumas vezes e por outras mais solícito do que qualquer carola por vocação, o moço e cultor das atividades eclesiásticas permanecia, segundo alguns superiores, firme na prática da justiça e no temor a Deus. Consoante outros, apesar da primeira idéia ligada ao seu nome, esperava tão somente o enriquecimento no terminal momento de sua vida, onde seria consagrado com

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

OS NAMORADOS - Conto de Julio Damasio (Curitiba, PR)

OS NAMORADOS

Paulo com olhar malicioso para Luiza, fala :
— Vamos dar uma voltinha, meu bem?
— Aonde pensa em me levar?
— Vamos até a nossa praça, sentar num banco, minha menina.
— Só?
—  E também conversar um pouquinho.
— Você não vai querer me bolinar?
— Não amorzinho, claro que não. Você está uma delícia de vermelho!
— Abusado...! Você não cresce mesmo... Então vamos!
No meio do caminho, ele sobe num muro e se contorce todo para pegar uma rosa branca do jardim de um vizinho. Ela fala:
— Pare com isso, deixa de ser peralta, é feio pegar sem pedir. Isso é roubo.
— Quando se quer dar a rosa a quem se ama, chega a ser até bonito roubá-la.
— Obrigada, meu garoto. Eu também te amo. Mas..
Eles vão de mãos dadas, chegam à praça e sentam num banco embaixo de uma pereira. Ele beija o rosto dela, depois o pescoço. Ela se esquiva, falando:
— Olha as pessoas passando aí.
— Todos têm de ver como o amor se manifesta!
 Ela, olha e sente a descompostura do parceiro, Paulo pega no joelho de Luíza que  com o sorriso tímido, diz:
— Olha a mãozinha boba! Isso já é...
— Ó, minha menina! Boba seria minha mão se ela não procurasse as suas pernas...
— Você não tem jeito...!
— Veja como a árvore está florida, terá muitos frutos esse ano. Ela, com sua sombra, tem sido o abrigo do nosso amor!
__Meu amado!
— Quero tanto fazer amor com você, minha lindinha!
— Você sabe que não podemos. Não é hora de pensar nisso.
— E lá se tem hora pra se pensar em fazer amor, que não seja a hora que desejamos?
Com um sorriso sensual ela diz:
— Há muita gente em casa.
— A gente faz baixinho, igual fazíamos no porão da casa de seu pai, quando éramos noivos. O som do nosso prazer era abafado, e retido todo ele dentro do nosso ser.
— Meu safadinho adorável.
— Quando você morde os lábios, meu desejo aumenta mais.
— Temos de ir!  Está esfriando e você não trouxe o seu cachecol, pode pegar um resfriado desse jeito. Talvez nossos netos nos façam uma surpresa.
— Bodas de ouro! Há cinquenta anos, a vida me presenteou com você.
— Até parece que foi ontem que plantamos essa árvore. Lembra que essa praça era deserta, e uma noite nós...
— Posso te pedir uma coisa?
— Claro! Peça todas as coisas.
— Não cresça nunca, meu menino! Vamos?

— Vamos, vamos meu amor.

RECUERDOS - Crônica de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

RECUERDOS

No corredor do casarão, minha mãe tinha três andorinhas de porcelana azul-marinho com biquinhos dourados que pareciam voar na cor desmaiada da parede. A maior embaixo e a menor puxando o bando, dava a sensação de afastamento. Eu perguntava para onde iam se nunca chegavam, mas ninguém respondia. Um dia, irritada, minha tia falou: “guria, isso é só um enfeite, nunca irão a lugar algum”.

Na varanda do casarão, meu pai tinha um viveiro de canários e exibia aos amigos. Toda manhã, bem cedinho, seus “detentos” cantavam. Ele os alimentava com gema de ovo, folhas de alface, rodelas de laranja e alpiste. Vendo a cena, eu resmungava: “de que adianta tanto cuidado se limita o espaço?”. Enquanto ele argumentava sobre não saberem viver fora do cativeiro, minha mão coçava no ferrolho das gaiolas. Imaginava a revoada varanda afora se as abrisse só por um instante. Ante suas ameaças, minha rebeldia recuava.

Tantas vezes me senti como aqueles pássaros ou indo a lugar nenhum feito as andorinhas de porcelana da minha mãe. Sonhei com asas para o outro lado, distante da frieza imperturbável das grades; do céu de mentira no vazio acinzentado das paredes. E quem voou foi tempo. O casarão continua lá, eterno cativeiro a enfeitar a esquina; eco de ensinamentos que me serve de bagagem. Quando bate a saudade, assaltada de incertezas, me voltam os canários. Pergunto-me se aprendi a viver. Ninguém responde. De longe, irritada como sempre, a voz da minha tia: “guria, isso é coisa que se pergunte?”. 

A GAVETA DA ALEGRIA - Crônica de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

A GAVETA DA ALEGRIA
                                                                                       
Essa é uma gaveta que precisa ser aberta de tempos em tempos. Não vai estar sempre escancarada, pois falsearia o equilíbrio das coisas. Alguns conseguem deixá-la entreaberta num movimento repetitivo de abre e fecha, só para não lacrá-la de vez. Para alguns acontece – o lacre –, mas não para quem tem histórias na família para lembrar e contar. Na minha, os primos quando se encontram, somos como sonâmbulos da existência, descendo sempre e sempre em busca dessas jazidas que nos identificam e nos unem.

Num desses encontros apareceu a história de duas tias-avós que foram retirar os ossos de um irmão do jazigo da família – três andares, subterrâneos, contendo de cada lado três covas – não era tão suntuoso como aqueles das famílias mais abastadas da região, mas era bem localizado, logo ali no terceiro corredor à direita do portão principal. A bisavó sempre dizia: “Nossa família a vida toda morou a uma quadra da Praça Central da cidade, só o que me faltava agora é deixar minha gente ficar na periferia do cemitério para toda a eternidade”.

Às irmãs mais moças cabia aquela tarefa desagradável, remover o que sobrava dos falecidos mais antigos e abrir uma vaga para o próximo enterro. Há tempos ninguém morria, mas tio Feliciano andava prometendo, portanto só para prevenir era hora de levar os ossos do irmão, enterrado no último pavimento rente ao chão, para a parte superior do Jazigo, onde se localizava

NA PRAIA - Conto de Márcio Estamado (Álvares Machado, SP)

NA PRAIA

As crianças chegaram à frente. Nos rostos, a alegria incontida, que um céu semiacinzentado emoldurava.
-Já, já essas nuvens se vão. Faz como eles.
Os pares de chinelos diminutos, abandonados durante a desabalada carreira, me autorizaram. Nos pés, a sensação macia, tépida, aconchegante. O sol estivera mesmo por ali, há pouco. Revolvi os grãos finos com o dedão. Incontáveis; mas cada grão é único. Fui em direção ao mar que avançava, lenta e soberanamente. Ouvi uma voz, dizendo:
-Olha como correm!
Sorri satisfeita; perseguiam uma gaivota que já longe ia. Os pezinhos nus rasgavam o fino lençol d’água que lambia a areia. Naquele instante, o vento afastou nuvens frágeis, trazendo um brilho caloroso, e também o sal do oceano. Será que esse sal é daqui? Ou de além-mar? Minha curiosidade foi aguçada pelo sedimento úmido e duro, conchas, e muitas pedrinhas, que acariciavam rudemente as solas de meus pés. À minha frente, mar e horizonte, misturando-se ao longe.
Voltei; já ele tinha preparado a esteira, com nossa refeição. Uma cadeira preguiçosa aguardava.
-Senta.
-Prefiro a areia, disse.
Deitei-me de costas, apoiada em meus cotovelos. O calor crescente não me intimidava.
-Te sentes cansada?
Sim, me sentia cansada. Mas ter vencido tudo, metástases, quimioterapias, tornava aquele cansaço insignificante.

Observei a onda que vinha e a outra, logo atrás. Na espuma que traziam, a minha, a tua, as nossas vidas. E a do filho que um dia eu quero ter.

domingo, 25 de outubro de 2015

À HORA DA TEMPESTADE - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

À HORA DA TEMPESTADE

No porão da minha avó, eu encontrei o lampião. O metal escuro, um cheiro de azinhavre, o vidro opaco. Limpei até deixá-lo novo. Vovó achava que um menino de onze anos não devia sentir medo nem dormir de luz acesa. Eu concordava com ela, mas conservava o lampião, querosene no pavio, pronto para uma emergência.
Ventava muito certa madrugada. Ouvi um som estranho. "Está escuro. Acende o lampião." Me cobri bem. Fiquei gelado. Tentei gritar.
Voltou a luz. De tão cansado, dormi. Só acordei dia claro. Pedi a minha avó para me contar a história do lampião. Ela arregalou os olhos. Tinha dado ordem para a cozinheira se livrar dele.
A filha do casal que mandara construir a casa, certa vez, passou meses atormentada. Contava que um homem ruivo, de olhos pequenos e fixos a perseguia. Naquele tempo não havia energia elétrica. À noite, as pessoas levavam uma vela para o quarto. Os pais da moça, vendo-a se consumir de medo, deram-lhe um lampião. Ia mantê-lo aceso. Após uma noite de forte tempestade, ela desapareceu. Um homem com as mesmas características daquele a quem a moça descrevia foi encontrado no quarto de outra moça. Chamada a polícia, ele confessou que seguia as virgens até levá-las para a casa dele. Mantinha-as no porão,onde, com o tempo, esqueciam quem eram