sexta-feira, 13 de novembro de 2015

EM TROCA - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

EM TROCA
                                                                      
 Um solzinho invernoso mal aquecia o interior do carro naquela manhã gelada. Foi quando a vi, uma figura apressada e frágil, de ombros arqueados. Parecia mais um risco desenhado contra a luz filtrada por entre as árvores do estacionamento.  Atravessou o pátio e foi em direção a porta principal. Segurava o estômago com uma das mãos e disfarçava o gesto com a bolsa que levava a tiracolo.

Quase na entrada do prédio, gesticulou como quem organiza a fala e se convence de que está pronta para qualquer confronto, mas, se alguém a observasse melhor veria que estava visivelmente abalada. Fiquei imaginando a luta interior e que narrativa a traria ali.

Determinada, foi na direção dos corredores laterais, desviando de um e de outro sem olhar nos olhos dos passantes, não queria distrair-se, pensei, nada deveria interromper o ritmo de seus argumentos, nem fazê-la perder tempo. Engolia com esforço, e na boca seca só aquela eterna ardência que subia e descia sem lhe dar trégua, como o rastro queimado das palavras não ditas. Dobrou mais um corredor, avistou a placa indicativa e um leve tremor a percorreu. Quis voltar, mas apenas diminuiu o andar e, para disfarçar a indecisão, olhou o relógio. Em cima da hora. Dirigiu-se ao balcão e entregou a carteirinha de controle. Ao ultrapassar a porta, leu o painel de informações como se alguém pudesse se perder depois de já ter passado por aqueles caminhos. Preparou-se. Como das outras e de tantas outras vezes, o médico veio ao seu encontro e ela, exaurida, sem nenhuma palavra, foi.             

Do lado de fora, no estacionamento do

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

TIO LAURO - Conto de Jorge Silveira Wernz (Alegrete, RS)

TIO LAURO (PIRAJUANO)
Rincão de São Miguel e seus personagens

Apareceu no Rincão, la pelos anos de 1958, vindo das bandas de São Francisco de Assis, mais precisamente de uma Região denominada Piraju, onde trabalhara com os LEIRIA.

Sua tez demonstrava a mestiçagem de Negro com índio; seu temperamento calmo, excessivamente calmo, e sua paciência com as crianças dava-lhe logo logo, a confiança dos Estancieiros.

Estabeleceu-se primeiramente como agregado, se não me falha a memória na estância que arrendava na época, o Seu Aparício Marques.

Sua montaria, uma égua tordilha que trazia "ao pé" um potro doradilho, frente aberta que ele batizara com o nome de PIRAJUANO em homenagem, talvez, à sua querência.

Com o passar do tempo, descobriu-se que toda aquela bondade tinha o seu tanto de defeito. O Tio Lauro era dado à bebida, e não pouco...

Este vício fez com que ele fosse passando de estância em estância , sendo admitido por todas as suas qualidades e despachado dois ou três meses depois, quando botava a mão nos trocos e "breteava" rumo ao bolicho.

Mais tarde, quando já garbosa e orgulhosamente montava seu pingo PIRAJUANO é que seu nome fez estória.

Com parada certa lá no

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

MEIA-NOITE - Conto de Ricardo Pereira Duarte (Uruguaiana, RS)

MEIA-NOITE


Como era manso o meu cavalo! O patrão sempre se admirou do jeito que eu tratava com ele. Não só de pegar em qualquer lugar que eu quisesse, mas pelos truques que lhe ensinara, como deitar ao lado da cerca e permitir que eu o puxasse pela cabeça e pela cola, arrastando-o para fazê-lo passar por baixo do arame, o que me dava uma grande vantagem algumas vezes, não precisando andar maiores distâncias para achar uma porteira, passando rapidamente uma divisão de campo em caso de urgência.

E outros truques, que só eu sabia e nunca mostrei a ninguém. Mas meu cavalo não se negava de pegar em campo aberto, de dia, ou de noite, que eu o amansara muito bem da minha presença, com mimos especiais de gulodices, sal e açúcar.

Se eu gostava do meu cavalo? Claro que sim!... Bueno! A princípio, nem tanto; mas quando vi que ele se amansava e me podia dar vantagens que outros não tinham, aos poucos fui me afeiçoando, até criar um verdadeiro amor por meu parceiro. Ninguém me daria o que meu cavalo me podia dar.

Parece exagero? Bueno... Eu podia levantar na madrugada sem ninguém notar, chegar até ele, onde estivesse, e, de em pelo e sem freio, montar e tomar meu rumo; passar em qualquer cerca para chegar aonde outros não chegavam. E na volta da empreitada, em lugares desconhecidos, podia pegar meu pingo num potreiro escuro com a maior facilidade e no maior silêncio chegar até minha cama, de volta à estância. Eu o fiz assim. Para minhas noites de escapadas. Não por acaso o chamei de Meia-noite.

O amigo me vê aqui sentado, como um pobre velho, fumando meu palheiro em silêncio, tomando meu mate, engraxando as minhas pilchas como uma posteiro de fundo de campo, e pensa que eu não tenha tido uma vida boa; que estou enrugado da idade e judiado da lida; imagina que a sua vida na

FLORIANO - Conto de Valéria Surreaux (Uruguaiana, RS)

FLORIANO

Floriano era homem imenso. De ombros largos, voz empostada, cheio de polidez e boas maneiras. Quando estava na cidade, era assíduo frequentador de absolutamente todos os velórios de desconhecidos.  Às últimas homenagens aos conhecidos, ele abdicava, preferindo ficar em seu quarto, nos fundos da casa dos meus avós, bicando uma cachaça ordinária. Fazia questão de usar um português impecável e arcaico e trajar ternos de linho branco e sapatos Bataclã. Aos domingos passeava displicente pelas carreiras de cavalos, gastando todas as patacas de sua parca aposentadoria, e foi lá mesmo que deixou sua sorte, sobrando-lhe do muito que teve, o triste patrimônio de oito hectares de campo duro, um cavalo crioulo e um apêro de prata, fazendo de Marina, minha irmã, sua única herdeira.

Com a perda do campito nas carreiras, a morte do cavalo e o roubo dos arreios, Marina deixou de acreditar na própria sorte, mas não deixou de proteger Floriano dos ataques que sofria da família, que o acolheu por ser sozinho e distantemente aparentado. Não fazia arruaças, mas quando bebia atacava a geladeira e enchia os bolsos de panquecas e bolos de arroz e os escondia n guarda-roupa. A empregada e a família pediam que ele comesse  o que quisesse e a hora que bem entendesse desde que em local apropriado e sem esconder alimentos embaixo dos seus suéteres. Quando o acusavam de estar bebendo muito, Marina defendia seus hábitos atribuindo-os  a alguma deficiência mental, afinal era filho de Leocádio, o homem que só sentava-se à mesa com uma lata de massa de tomate em cada orelha, presas por um arame, dizendo-se o speaker do além. A genealogia de Floriano depunha contra ele.

Quando iam para a estância, levavam Floriano, que se ajeitava pelo galpão. Nada o fazia mudar de ideia, era lá que ele gostava de ficar floreando o português de uma forma tão ostensiva que a peonada só conseguia entendê-lo por intuição. Logo arranjava uns cambichos com as filhas de algum lindeiro e era rapidamente aceito pelas famílias. Tinha conhecimentos significativos de história, geografia e pecuária , e o cuidado de ocultar seus hábitos de prodigalidade e bebedeiras. Meu tio, via em Floriano o alvo certo de diversões sádicas. Sempre que se pilchava a preceito, com

ATÉ A ÚLTIMA GOTA - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

ATÉ A ÚLTIMA GOTA

O suor escorre entre os seios enquanto apanho caderno e caneta para tentar avivar minha memória. São duas da tarde e estou sentada sobre a minha cama. Ontem o gato do meu filho, trazido para casa contra a minha vontade, fez coco neste mesmo lugar. A primeira reação do rapaz foi rir, depois, trouxe o animal e encostou-lhe o focinho na sujeira com uma violência que me fez tremer de medo.

Leandro sempre me assustou com as chegadas intempestivas e os gritos de ameaça. Eu mal respondia, não sabia como agir com ele. Passou a me agredir com tapas e eu continuei desorientada. O dia em que o convidei para ir ao psiquiatra, ele se encaminhou para a cozinha como se não tivesse ouvido, voltou com um copo cheio de água e me jogou no rosto. São raros os dias em que ele não me joga água e não me bate, mas eu faço terapia e tomo medicação.

O gato se enrosca na minha perna. Eu grito de horror. Ele deixa o meu quarto e aproveito para fechar a porta. Odeio pelos, penas, escamas.

Várias vezes tentei ajuda dos meus irmãos, dos meus pais sobre a violência do meu filho. Eles se olham de relance e, afetando preocupação, afirmam que isso não pode continuar. No vidro da porta de entrada do apartamento, por dois anos vi a imagem de uma espécie de índio de feições delicadas. Nos meses de férias de verão estive fora e esqueci dele. Largo a caneta e vou às pressas conferir se ele está lá. Não me abandonou. Ou os remédios não fazem efeito, ou tenho um ser que me protege.

É um dia quente de março e comenta-se que vai esquentar muito mais. O calor desenha figuras nas paredes e no chão. As figuras me tratam como criança: fazem caretas assustadoras ou cômicas. Peço socorro para a minha mãe pelo telefone e ela me pergunta se eu não contei isso para o médico. É claro. Acho que é por isso que ele prescreve tantos remédios.

A agonia de um miado me chama para a área de serviço. O chão está vermelho. Do spot de luz, pende o gato por um cordão de nylon, a língua de fora, os olhos esbugalhados.

A voz empostada de Leandro, entre rindo e querendo assustar, anuncia: a próxima poderá ser você!


Volto para o meu caderno onde escrevi estes segredos e continuarei escrevendo até a última gota, quando serei carregada nos braços do meu índio protetor.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

ANO NOVO - Crônica de José Antônio Marques Fagundes - Tunico Fagundes - (Uruguaiana, RS)

ANO NOVO

Estamos a 50 dias do inicio do 16º ano do século XXI, "la maula" como o tempo voa!

Todos ficam repetindo que os dias atualmente passam com mais rapidez, que antes não era assim, que não temos mais tempo para nada. Verdade ou não, o tempo passa e nessa marcha inexorável, vamos juntos.

Lodo teremos o réveillon oriundo do verbo réveiller ou seja: ação de nascer, despertar, fazer novo, ou simplesmente começar um novo calendário.

Aqui no campo esse período começa em Setembro, tempo de mexer na terra, plantar, acasalar, ver nascer, florescer, germinar e viver!
Nessa data campestre não usamos roupas com cores especiais, não estouramos espumantes, não soltamos fogos de artificio, nos vestimos da roupa alegre do trabalho de quem sabe produzir, nossos fogos são o suspiro de satisfação ao ver o trabalho concluído, nosso espumante é a água pura matando a sede de mais um dia laborioso.

Daqui até Janeiro as luas trocarão de forma 4 ou 5 vezes, os céus estarão cada vez mais límpidos e estrelados ( se parar de chover ), as noites serão agradabilíssimas cheias de bons sonhos. Enquanto escrevo observo alguma estrela cadente e um satélite que passa todos os dias por aqui "camperiando" a imensidão do universo. Fico imaginando as imagens por ele captadas, os sons lá do quase infinito e quem sabe algum ET me espiando "lá de riba"!

Enquanto minha cabeça viaja, vou tranqueando no horizonte entre o verde ondulado e o firmamento infinito, às vezes parece que saio de um plano para outro, como se voasse no tempo que vivo, o irreal fica real e a aventura anda de mãos dadas com a realidade.

Sempre acho que andar pelo campo e escrever tem uma semelhança muito grande, pois entre o que se olha o que sentimos e imaginamos a diferença é, no meu entender, muito pequena.
Há uma linha muito tênue que separa a percepção, a imaginação, a inspiração e a realidade.

Um Feliz Ano Novo a todos os que ousam sonhar e alegrar-se com o milagre da vida! 


Estância Coqueiro, lua minguante de novembro de 2015

MARES PARALELOS - Crônica de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

MARES PARALELOS        
                                                                                    
Uma fina linha d’água escorrega pelo piso em direção ao solado da porta que se abre para o corredor. Ao chegar perto, faz um leve desvio pela inclinação do assoalho e para por alguns segundos – o suficiente para tornar-se mais grossa e densa. Acumulada, impulsiona-se e rola mais para frente. Escorrega, ladeando o rodapé rumo à escada.

Basta olhar bem, para vê-la escapar lentamente degrau por degrau, uma de cada vez até o solo no mesmo ritmo cadenciado. Plaf, fazem. Plaf, plaf, plaf e se aplastam uma atrás da outra. Redondas, brilhantes, inocentes. Algumas gotas menores ficam penduradas na virada do degrau, equilibrando-se até que zupt, empurradas por outras e mais outras, as gotinhas vão,vão,vão... vão escada abaixo.

  A fina linha d’água esforça-se para chegar à porta da frente e sair. Por fim, escapa e desliza na lateral da calçada contra as paredes externas das casas que formam a rua. Corre pelas reentrâncias dos ladrilhos em linha reta. Com atenção poderá ser visto o ziguezaguear confuso nos canaletes só para desviar da língua do cachorro que quer bebê-la, da cama de papelão do mendigo que tenta absorvê-la, da poeira acumulada nos cantinhos das inúmeras encruzilhadas que formam o pavimento da calçada. Pelo caminho, ainda encontra passos apressados e desatentos, o que dificulta segui-la num trânsito complicado.


Um desavisado, dos pequenos detalhes da vida na calçada, sobe da sarjeta e invade a pequena correnteza. Dissipa, dissolve, esparrama, divide, esfacelando-a em mil pequenas gotículas. Mas, num último e derradeiro esforço, aproveitando a ladeirinha que inclina a beira da calçada, reúnem-se outra vez em linha na busca do próprio destino – o bueiro no final da rua. Dali, o rio e finalmente o mar.