terça-feira, 8 de dezembro de 2015

RECEITA DE FAMÍLIA - Crônica de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

RECEITA DE FAMÍLIA

Tomando todo o cuidado com a fragilidade dos enfeites, ela os distribuía pelos galhos do pinheirinho. Bolinhas coloridas e brilhantes de todos os tamanhos, tirinhas de algodão imitando neve, laços verdes, vermelhos e dourados. Em duas horas, mais ou menos, uma bela árvore surgia no canto da sala. Depois, segurando com delicadeza, acomodava o Menino Jesus na manjedoura. Entre Maria e José. Atrás deles, Vaquinhas e ovelhas – “a respiração dos animais aquece o recém-nascido”. Logo em seguida, os reis magos e os pastores. Todos em seus lugares, o cenário era adornado com pedrinhas e gravetos, criando um clima de aconchego. A partir daquele instante, só expectativa. A chegada do Natal era o foco de nossas vidas em dezembro.

— Criança é bicho bobo — ela dizia, rindo-se de nossa ansiedade.

Um dia, impiedosamente, meu irmão destruiu nossas ilusões ao revelar a verdadeira identidade de Papai Noel. Ela tentou despistar, mas as provas eram irrefutáveis: dentro daquela roupa grossa e calorenta, nada mais, nada menos, que meu tio. O trenó, tão esperado, não passava de um carro de praça que o deixara na porta. E a rena encantada, um chofer que sequer sabíamos o nome.

— Adolescente é bicho chato— resmungou contrariada.


A ruptura de nossos sonhos pela descoberta, não a impediu de continuar montando a árvore no canto da sala. Por anos e anos. Como fizera sua mãe e, antes dela, sua avó. Os rituais se mantiveram intactos. A Missa do Galo transmitida pelo rádio, a troca de presentes, a mesa posta com cuidado. E, cafonices à parte, aquele peru com farofa úmida, velha receita de família. Assim ela transmitia os gestos de amor que herdara, como um elo entre os que se foram e os que virão. Sem nenhum traço de melancolia. E para manter o que nos liga, faço a mesma coisa.

PAPAI NOEL DE CHOCOLATE - Crônica de Dôra Borges (Cássia, MG)

PAPAI NOEL DE CHOCOLATE

É quase Natal e, gentilmente, eu ganho um presente de duas alunas em agradecimento à orientação do trabalho monográfico, após a banca de apresentação. Até aí, tudo bem.
Mas quando chego em casa, abro o embrulho e me deparo com uma bela caixa de papelão escrito “Magia”, contendo um Papai Noel de chocolate. Achei o velhinho tão bonitinho e simpático, segurando o seu habitual saco de presentes. Meio sem querer acreditar em seu destino, fui logo pensando: como vou comer esse Papai Noel? A minha reação foi instantânea: não tenho coragem.
Deixo-o no centro da mesa de jantar e, em todas as refeições, me vem a mesma interrogação: como ter coragem de comê-lo?
Imagino a trágica cena e sinto-me como o lobo mau devorando a vovozinha.
Porém, mais dia, menos dia, isso terá de acontecer. E então não saberei por onde começar. Se pelos pés, se pela cabeça... Ai meu Deus, que suplício!
Não. Definitivamente, não farei isso. Posso até ser castigada e não receber sua visita, ficando sem presente algum ao deixar meu sapato na janela, na Noite de Luz.
Decido então colocá-lo na minha estante e esperar o Natal passar. Se meus pedidos forem realizados, volto a pensar (ou não) no assunto.
Nesse meio tempo, fica o meu apelo às empresas fabricantes de chocolates e outras gostosuras que, por piedade de causa, não fabriquem Papai Noel e Coelhinho da Páscoa de chocolate ou bolo de aniversário com foto comestível. Isso poderá trazer uma grande crise de consciência na hora de devorá-los. Afinal, se você gosta tanto de alguém, espera que esse alguém lhe traga um presente ou quer parabenizá-lo por existir etc. e tal, como gulosamente devorá-lo?
E lá está meu Papai Noel na estante de bibelôs.

Data de validade: fevereiro de 2014.

DO VAZIO, O PRINCÍPIO - Crônica de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

DO VAZIO, O PRINCÍPIO

Nessa época, todos querem manifestar-se. Se não o fizer, parece descaso com os amigos, com o espírito de renovação que ronda sempre os finais de ano, com a espiritualidade ornamentada de luzes, de músicas, de anjinhos e enfeites fluorescentes nas ruas e vitrines espalhadas pela cidade. É de novo Natal.
Mensagens circulam na Internet com textos, imagens, músicas, desenhos coloridos que piscam e brilham sem cessar. Uma delas (aliás, recebi mais de uma vez) falava sobre o “Princípio do Vazio”, alertando para o vício de guardar coisas, ou sentimentos que não nos servem mais.
Desfazer-se abre espaço para outros inícios, dizia a mensagem, o que remete à boa ideia de novidade, de frescor, de viço e se contrapõem ao que está gasto, obsoleto, quem sabe anciano até – induzia o texto.
É de novo Natal. Nos intervalos das luzes e cores paira certa nostalgia e, só por isso, contrariando a mensagem do desfazer-se, fiz uma lista de pedidos.
Papai Noel, se for possível, bem que eu queria de volta:
Aquele sapato preto de pelica, de salto alto bem fininho, que ele carregou para mim, depois do baile, no caminho para casa;
a mini saia que fez sucesso, nos jogos inter séries do colégio, e eu fingia não notar;
O caderno de Filosofia que não sei onde foi parar, com as minhas primeiras poesias dedicadas a um professor da Faculdade que nem lembro mais o nome;
As cartas e os bilhetes do antigo namorado, aquelas que eu queimei, no primeiro ano de casada, porque a vida estava completa e era para sempre;
As fotos que rasguei porque me achei horrorosa. Não ia me registrar para a posteridade com aqueles cabelos antes da escova progressiva;
O livro “Mila 18”, de Leon Uris, que encerrou minha adolescência. Perdi, porque emprestei e não fui atrás;
A colcha de crochê feita pela minha bisavó, especialmente para mim e que não sei que fim levou;
A casa de campo que abri mão na separação. Não quero para sempre, só para reviver a infância das crianças e o tempo das ilusões;
Os cachinhos de cabelo das minhas filhas. Sei que não me desfiz deles, estavam enroladinhos num papel de seda dentro de uma bolsa. Será que dei a bolsa?
Esse, eu não sei se posso pedir, mas, Papai Noel o primeiro amor tem um gosto de verdadeiro...
Tempo. Só para fazer diferente algumas coisas. É eu sei – tempo – já é mais difícil, entendo...

Papai Noel, escuta. Eu não sou do grupo que guarda e, portanto – desse vazio recomendado – bem que eu queria (outra vez) o princípio.

VIVÊNCIAS - Crônica de Marcelo Meira (Rio de Janeiro, RJ)

VIVÊNCIAS


O que mais assusta certas pessoas em termos de diálogo é aquilo que se chama de um mergulho interior. Muitos não se consideram fortes o bastante e cada qual tem suas razões certeiras ou não para deixar de assumir diante de alguns, ou mesmo publicamente, aquilo que de uma forma natural deveria emergir de uma própria maneira de ser. É o temor consubstanciado até mesmo na vergonha que se submete ao império da crítica alheia. É como exemplo o receio da confissão de ter sido agente passivo de um desamor ou do consentir em ter errado, esquecendo-se que isso não significa submissão inalterável a qualquer desses fatos. É não compreender que se agindo desta forma apenas será obtida uma profunda solidão perante a vida, que se transmuda e evolui através o diálogo salutar e verdadeiro quanto às situações que são assumidas e discutidas com os argumentos que emergem de nossa alma. E essa finalidade visa que possamos aceitar novas posições ou conclamar nosso sentido de vivência.

EM SE PLANTANDO TUDO DÁ - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

EM SE PLANTANDO TUDO DÁ – uma reflexão sobre cultura

Uma jovem, os cabelos longos e sedosos, o sorriso largo, a despeito dos olhos tristes, entrou na Galeria Independência, em Porto Alegre. A surrada bata indiana, esticada pelo ventre protuberante de seus oito meses de gestação. Oferecia pares de brincos e óculos escuros argentinos para os lojistas. Houve um momento em que ela sentiu que enquanto se dirigia para a próxima boutique, os funcionários a seguiam com o olhar, as expressões faciais nada simpáticas. Um deles chegou a interpelá-la e ela respondeu que só estava vendendo objetos por um valor maior do que aquele pelo qual os adquirira. Qual era o problema de alguém ganhar dinheiro para adquirir o enxoval do seu bebê?
Essa mulher, só muitos anos mais tarde, viria a saber que aquilo era contrabando ou descaminho, algo ilícito. Em Uruguaiana parecia natural, por quê? Por que era um costume, fazia parte da cultura do lugar. E, de volta a Uruguaiana, longos anos depois, pegou-se sentada no local onde tem seu pequeno negócio, casualmente uma galeria, escolhendo meias de lã de um outro jovem homem, que as retirava de uma discreta sacola plástica. Disse não, pois estava dentro de uma galeria comercial, os

PEQUENOS ABANDONOS - Conto de Claudio CAlex Fagundes (São Paulo, SP)

PEQUENOS ABANDONOS

- Faz de conta que não existe nada, que tudo aquilo que a gente vê lá fora está longe demais. Não é tanta mentira assim!
Levantou. Foi como se fosse trocar um disco, mas desviou da vitrola e se encaminhou para a estante de livros. Também não procurou nenhum livro. Apanhou, isso sim, um cigarro. Acendeu.
- Não... não sou tão alienado assim - continuou - Não me olhe com esse olhar reprovador!
- Não estava pensando nada - disse ela - não estou reprovando nada! Acho que você até tem razão quando diz isso!
Ele levantou. Tomou o cigarro das mãos dela e deu uma tragada. Soltou a fumaça para o outro lado. Trouxe o cinzeiro e sentou-se na cama.
Ela acendeu um outro cigarro. Sentou-se também. Pausa.
- Você vê esse olhar reprovador em tudo - disse ela com o cigarro pelo meio.
- E o que você está fazendo agora? Por acaso não está me chamando de paranoico? Ou reprovando minha atitude?
- Sua conduta está intolerável. Você está nervoso demais para o meu gosto. Vou abandoná-lo.
- Claro que vai, eu também não te suporto mais - disse ele e saiu.
Fechou a porta delicadamente. Não fez maiores dramas, não havia razão. Ela é uma ótima mulher, mas o que se pode fazer - pensou. Desceu no elevador. É impossível suportar uma relação em que a paixão se escasseia e dá lugar àquela

CONVERSA ENVOLVENTE - Crônica de Vera Ione Molia Silva (Uruguaiana, RS)

CONVERSA ENVOLVENTE


Ontem fomos uma amiga, meu filho e eu a Bella Unión, Uruguay, fazer umas comprinhas (nada do que vocês estão pensando) e estávamos num papo tão animado que andamos uns dez minutos num cortejo muito lento. De repente, eu disse brincando: "Será que não estamos seguindo para o cemitério?" Ela perguntou para o motorista de um carro vizinho se havia algum problema com a estrada e ele confirmou que estávamos acompanhando um funeral.

A MULHER DO AVON - Crônica de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

A MULHER DO AVON

Eu não sabia quem era o Seu Avon, mas a mulher dele, seguidamente, aparecia lá em casa para uma longa prosa com minha mãe.
Eram amigas, acho que eram amigas desde a infância, minha mãe oferecia chá com bolachas Maria ou um mate doce. Teve uma tarde que elas detonaram uma jarra de Q-suco de morango com bolachas de água e sal. Naqueles tempos não havia o temor da balança e do diabetes. A mulher do Avon era muito querida, trazia revistas que minha mãe folheava, atentamente, e em outras vezes trazia presentes.
Nos dias de visita – normalmente na hora do almoço – a mãe comentava que tinha que preparar algo para esperar a mulher do Avon. O pai não gostava dela, achava uma mala sem alça, decerto tinha lá os motivos dele.
Nos meus dez anos o que importava eram os jogos de futebol no campinho próximo da minha casa, andar na Monareta e assistir Bonanza nos finais de tarde. As amigas da mãe eram, apenas, amigas da mãe.
Mas me intrigava o oculto do Seu Avon. Deveria ser uma pessoa importante, tão importante que a mulher dele não tinha nome, era simplesmente a mulher do Avon.
Certo dia a mãe falou que a mulher do Avon estava doente e foi visitá-la no hospital. No dia seguinte a mulher do Avon falecera. Foi um dia muito triste lá em casa, aliás, em toda a vizinhança.
Quando meus pais voltaram do velório perguntei como estava o Seu Avon – aquela pessoa importante que nunca tinha visto –, afinal, eram amigos da nossa família e eu tinha que mostrar um interesse no acontecido.
– Que seu Avon, guri? – minha mãe devolveu a pergunta.
– A mulher dele não morreu? Ele está bem?
Com um semblante ainda triste, minha mãe sorriu e não disse nada.

E eu nunca fiquei sabendo quem era aquele tal de Avon.

O CRIADOR E SUAS CRIATURAS - Conto de Jorge Silveira Wernz (Alegrete, RS)

O CRIADOR E SUAS CRIATURAS

Após seis dias de trabalho incansável para a formação do UNIVERSO, resolveu Deus dar uma sesteada em sombra boa e aguada farta.
Acho que para isso escolheu o Rincão de São Miguel.
Após o almoço, entre uma "madorma" e outra, ficou observando a água cristalina que corria próxima de si. Estendeu suas mãos em conchas, bebericou dois ou três goles e disse-lhe:
"Bueno, minha amiga, tu vais ser o maior tesouro que criei para a humanidade. Para conservar-te limpa, vou criar o MUÇUM, o CASCUDO e o JUNDIÁ, pois do barro armazenado em teu leito, eles tirarão sua sobrevivência. Para que esses não cresçam desordenadamente, colocarei a TRAÍRA que permanecerá sempre em seu habitat. Como o seu crescimento pode ser excessivamente grande, darei ao DOURADO um poder maior de ação para que a TRAÍRA não comece a se 'fresquear" demais e querer ter muitos filhos. E, o DOURADO que não fique muito alegre, porque ele terá um crescimento controlado pela PALOMETA que também colocarei em suas águas. Pode ser que a PALOMETA seja o maior erro que farei, mas acredito que colocando o JACARÉ, ele controlará o excessivo nascimento das Palometas. O controle dos jacarezinhos que a natureza não quiser receber, a TRAÍRA e o DOURADO controlarão. Enfim, queridas águas, criei um equilíbrio para que vocês sigam com a tarefa de matar a sede do MUNDO".
Recostou-se ao tronco do velho Angico, coçou deliciosamente a longa barba e cochilou novamente, acordando quando um pequeno raio de sol teimava em penetrar por entre os galhos da frondosa árvore, atingindo-lhe o rosto. Sentindo o calor, foi às águas cristalinas que ainda corriam. Tornou a usar as mãos em conchas, bebericou novamente, molhou o rosto, as longas barbas e voltou para encostar-se no velho Angico.
Observando a intensidade do sol e a