sábado, 2 de janeiro de 2016

MIRADOURO - Conto de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

MIRADOURO

Exatos quarenta metros quadrados e um janelão que dava para a Rua dos Açores. Dali, via a praça, os velhos tomando sol, as crianças agitando-se nos balanços, os pássaros a ciscar migalhas; as luzes da cidade refletidas no mar ao longo da avenida, o movimento dos carros, o campanário da igrejinha de Santo Antônio, o castelinho da família Cardoso, o colégio das Irmãs de Maria, onde completara os estudos; e o prédio em reconstrução do antigo Educandário, depois do incêndio que presenciara.

À direita, muito além dos edifícios, o azul das montanhas sumindo na névoa da praia; à esquerda, e até perder de vista, o céu espelhando-se nas águas do Atlântico. Barcos chegando e partindo sabe-se lá para onde.


De fato... o mundo era pequeno. O que ele via, fora dos exatos quarenta metros quadrados de seu espaço, cabia inteiro naquele janelão.

FAMÍLIA - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

FAMÍLIA

Deu poucos passos com o cãozinho na guia. Ia comprar lençóis e travesseiros numa boa loja. Queria entrar o novo ano com beleza e conforto.

Sentiu aquela vertigem, efeito do remédio que devia tomar por cinco anos, que só sentira em casa. Pensou que seria um horror cair na rua com um animalzinho de estimação. As pessoas sentiriam pena, talvez a levassem para uma casa estranha.

Voltou-se em direção ao seu prédio e viu bem próximo um barzinho com cadeiras e mesas de lata na calçada. Caminhou com cuidado e sentou-se. Um jovem perguntou se ela queria que chamassem alguém. Não precisava, só ia comer um sanduíche e tomar um refrigerante.

Pensou quem poderia chamar em uma emergência. A memória não ajudava. Um dos filhos viajando pelo mundo, o outro nunca dizia quando a veria novamente.


Foi para casa, deitou no sofá da sala e deixou a porta do apartamento aberta.

NO LIMIAR DA AÇÃO - Crônica de Marcelo Meira ( Rio de Janeiro, RJ)

NO LIMIAR DA AÇÃO


Em mil novecentos e noventa e oito desembarquei em Brasília e segui em direção a um táxi. Chegando ao meu destino saltei e caminhei pela calçada. Em dado instante interrompi meus passos e meditei longamente. Ora, a que plagas me levaria aquela jornada?, a que insólitos ou inusitados recônditos dos mais ocultos países da alma?, a que culminação de sensações e boqueirões de mansuetudes ou agonias? Ao passado quase concluso sobrepunha-se a atmosfera do tempo presente... com o que era inesperado e escabroso daquela viagem e todos os seus embates. De tudo aquilo que havia ficado para trás, como a neblina que se dissipa por entre os pinheiros da serra, imaginava o sentido do tempo e do compartimento desconhecido que se abria a me depositar no mais novo limiar da ação. Era uma primeira tomada de posição diante dos fatos. Era ou não uma fatalidade que poderia se entreabrir ou eclodir com diversos resultados. Era um olhar apenas físico eis que o imaginário parecia ter ainda amarras com a terra de onde partira para um novo destino, porém arregimentado por novas incertezas das metas a alcançar. E ao cabo do espaço temporal necessário ... tudo deu certo . A missão foi cumprida. E com o ânimo impertubado, sem mágoa ou ressentimento, contrição ou angústia e sem até aquele sentimento de "melancolia da tarde do qual falava Zaratustra", retornei a minha terra natal, onde o tempo continuou a voar nas asas do vento sem macular de forma alguma o meu pensamento.

NOITE DE ENTREGA - Conto de Márcio Estamado (Álvares Machado, SP)

NOITE DE ENTREGA

-É ali, embaixo daquela ponte. Olha, o pessoal já chegou.

O marido de Lívia desceu do carro e ajudou-a a descarregar caixas com marmitas: arroz, feijão, batatas e couve.

Logo se juntaram a eles outros voluntários, que vinham carregando caixas de suco, cobertores e dezenas de peças de roupas para o inverno. E ao falar e lançar gracejos amistosos, cada membro do grupo dava a impressão de lançar da boca a fumaça de um cigarro invisível.

Quando a voluntária se voltou para abraçar o marido em agradecimento, ele já estava no banco do motorista. Deu a partida e gritou:

-Me liga quando essa palhaçada acabar!

Todos os presentes baixaram os olhos. Em resposta, Lívia sorriu:

-Não liguem, gente. O Mário não está nos seus melhores dias. É esse frio que estraga o humor dele.

Entre os ajudantes, cujo número aumentava, rumores de que o casamento de Lívia há muito era feito apenas de aparências.

Após mais alguns minutos, o trabalho começou. Como em todas as missões do grupo, uma corrente se formou. Da caixa térmica, trazida por um dos voluntários, saíam as marmitas preparadas por Lívia. Ela estava no fim da fila, junto com outros colegas, que distribuíam também roupas e os copos de suco.

O grupo de moradores de rua era

IMPRESSÕES DE UM SONHO QUE EXISTIU - Conto de Glauco Callia (São Paulo, SP)

IMPRESSÕES DE UM SONHO QUE EXISTIU

Tento dizer algo sobre você à mim mesmo mas tudo que encontro são palavras mescladas com imagens lembranças, flashes de sensações, lapsos de uma noite levada pelas ondas, escondida sob a areia .Talvez a tentativa fosse de se conformar com tudo que aconteceu tentando, repito, tentando virar a página daquela noite cuja Lua conspirou para que meus lábios se atracassem nos teus, para que meus olhos com seus cílios raspassem nos teus e continuassem como um pincel no teu pescoço, pintando seu colo com matizes e vernizes que viraram segredos na palheta de nossas memórias cúmplices, na tela daquela noite eterna cuja única testemunha é uma tartaruga insólita que veio dar na praia, tirando um leve sorriso dos nossos rostos grudados....Eu quero mas preciso convencer-me da realidade de algumas muitas, poucas, horas nas quais brincamos de atores de Cortázar em um Jogo de Amarelinha...

Disse em teu ouvido poesias tiradas de experiências de outros tempos e você riu da minhas palavras que não se usam mais, olhou meu rosto sério ao pensar nas possibilidades dos acontecimentos dos tempos, do jogo caótico de amarelinha a ser desencadeada por um beijo em tua boca, pelo sequestro de sua língua, da garrafa de Porto que foi esvaziada nesta mesma boca, dando aos nossos beijos ébrios um ar de coisa profana, deitados pelo chão, eu sobre ti, você sobre mim, deitados não... rolando...de um lado a outro...não lembro bem quando o beijo começou, nem quando terminou, assim como um sonho sem antes nem porquês, um jogo onírico no qual voava pra longe da terra e de minha vida real tão repleta de pequenos problemas, plena de grãos de areias que emperram grandes engrenagens de

RIMAS INFELIZES - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

RIMAS INFELIZES

Às nove e meia da manhã, uma moça entregava, na veterinária, objetos para serem doados ao Canil Municipal. O cachorrinho morreu ontem e, pela expressão decidida no rosto, ela deve ter feito tudo para salvá-lo.

Duas mulheres, mãe e filha talvez, descreviam o câncer, a ascite e outras doenças, enquanto um boxer que devia ter sido muito possante recebia medicação. Era velhinho, dezessete anos, mas o da vizinha tinha vinte. Por que o Ringo?


E a outra? Batera na porta às oito horas e ainda observava o soro, o antibiótico, a vitamina no bracinho minúsculo da bebê cachorra. Os cabelos despenteados, os botões da blusa desencontrados, cantava rimas infelizes para a melodia de Frère Jacques que pediam: São Francisco, São Francisco/ olha aqui, vem aqui/ olha a menina, cuida da menina,/ Felicity, Felicity.

ADORNO DESLOCADO - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

ADORNO DESLOCADO

Era uma caturrita madura. Quinze anos! A metade da expectativa de vida estimada para a raça myiopsitta monachus. Todo esse tempo na mesma família. Não se queixava da vida, gostava tanto daquela gente que queria cantar para eles. Mas o esforço era traduzido, sempre, pelo monótono e repetido currupaco.

Trocou de gaiola três vezes, uma boa média para o tempo de vida na casa. Mesmo sendo do mesmo modelo, da mesma cor e tamanho, era uma gaiola nova. Ficava agitada com o cheiro da tinta fresca.

Era uma caturrita madura e feliz. Parecia não ter queixas. No entanto para surpresa do dono algumas vezes, mostrava-se inquieta. Virava a cabeça rápida e vibrátil, repetidamente. Depois a escondia, em baixo da asa esquerda, para cochilos em tempo de longa espera. E se acalmava e não se reparava nela nenhuma aflição. Voltava a ser madura e feliz. Nesses períodos mais agitados, estranhava a ausência de um companheiro, até porque ouvia sempre a voz da dona repetindo:

– Linda, lindinha. – enquanto passava o dedo por entre os ferros da grade e alcançava sua

O VELHO - Conto de Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria, RS)

O VELHO

O Velho levantou cedo. Sempre fora madrugador, colocou água para esquentar e preparou o chimarrão. Mateava solito com seus pesares, longos mates nas intermináveis manhãs. O Velho estava acostumado com a solidão e os mesmos silêncios de todos os dias de sempre.

Eram poucos os ruídos em sua casa: o chiar da chaleira, o ronco do mate, o ronronar do gato e os latidos de um vira-lata no quintal. O gato e o cachorro eram as companhias do Velho e tumultuavam suas manhãs. Enquanto preparava o almoço – arroz, feijão, carne grelhada e salada – o Velho ouvia o rádio. Era nesse instante que se mantinha informado do que ocorria no mundo. À tarde o velho fazia longas caminhadas. Essa era rotina de um solitário e discreto velho. Um ancião com poucos amigos e pouca prosa. Conhecido, apenas, por Velho, o morador mais antigo da rua.

Seus dois filhos, João e Pedro, foram embora para a capital e já faz um bom tempo, a esposa, acometida por uma grave enfermidade, falecera poucos meses após a partida dos filhos. Assim, a sua principal companhia dos últimos vinte anos era a solidão repleta de silêncios. Acostumou-se a viver num exílio em sua própria casa. Isolado em meio ao alvoroço da vizinhança. Recluso em sua nostalgia. Certa feita, não reconheceu a própria voz ao xingar o cusco.

Os filhos visitavam o Velho no Natal e em algum feriado prolongado, mas nos últimos dois finais de ano o Velho passou a virada sozinho. Nesses dias o ronco do mate era melancólico. Semana passada recebera dos filhos um

QUEM SABE UM DIA ELE VIRÁ ME BUSCAR - Crônica de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

QUEM SABE UM DIA ELE VIRÁ ME BUSCAR

O carteiro me entregou uma caixa que vinha da Amazônia. Subi as escadas correndo e abri o sedex, o isopor, até chegar a uma garrafa com um líquido cor de bronze. Liguei para duas pessoas amigas, com quem costumava realizar práticas esotéricas, e uma delas marcou encontro comigo na minha casa, sábado, às dez horas da manhã. Éramos duas mulheres sentadas na sala de estar, olhando para um cálice de cristal sobre a mesinha de centro. Decidimos que sim, íamos conhecer o Santo Daime, ou ayahuasca (para os índios). Era uma época de profundo desencanto e tínhamos ouvido dizer e lido que essa experiência nos levaria a estabelecer uma conexão com o divino.

Bebemos do líquido amargo, era espesso, Daime chocolate, meu amigo escrevera no bilhete. Minha amiga deitou no sofá e eu sentei no chão. O chá não fazia efeito, comentamos. De repente, ela me olhou e gritou: “Não boceja, não boceja, tu estás te transformando em uma rosa”. Senti vontade de ir ao banheiro e encontrei tudo diferente. Havia o som de uma cachoeira, o vaso sanitário não era branco, tinha o formato de uma grande flor cor de rosa, decorada com folhas verdes. Muito grande para