sexta-feira, 22 de abril de 2016

BUSCA - por Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)



O coração atropelado acordou a mulher, os soluços convulsivos a levaram para a cozinha. Preparou um chá de erva-doce para digerir as tristezas e, nessa digestão, se fortalecer, acrescentou gengibre para ganhar coragem; coisas aprendidas na leitura do romance indiano A Senhora das Especiarias.
O pranto não cedeu e ela correu para a Internet para buscar Jesus. O modem estava com problema de configuração, não poderia receber o Messias.

Ela digitou salvação e se abriram possibilidades fulgurantes, construídas com substantivos abstratos.

QUEM BEBEU FUI EU - por Rodrigo Alves (São Paulo, SP)



Foi assim que morri.
O sol invadia a sala pelas grandes janelas. Comecei a andar entre aquelas crianças correndo, guiados com rigorosidade por alguns adultos ordenando gestos e costumes corretos, de boa política. É uma lógica simples, os pequenos crescem para virar gente grande e fazer outros tantos diminutos que também crescerão. Assim segue o ciclo e no meio disso tudo se faz arte, política ou qualquer outra coisa.
E estávamos ali, eu e minha esposa, naquele orfanato, para escolher um daqueles pequenos. É que vim com defeito de fabricação, não posso fazer gente e, mesmo sabendo fazer arte, isso não é bem visto pelos outros crescidos. Temos de formar uma família de dois grandes e pelo menos um pequeno, é uma parte essencial da lógica.
As crianças corriam e pulavam corda, saudáveis. Uma atirava o pau no gato, outra chorava enquanto se escondia de um homem com um grande saco, ao mesmo tempo em que uma das crianças que corria era perseguida por um boi com a cara preta.

Naquele dia ensolarado, usei minha pior roupa de sair, aquela que vai uma sobre a outra. Escolhemos um dos pequenos, olhamos com graça para aqueles olhos amendoados e estirados e depois um para o outro, cumplices na aposta. Minha esposa levantou nos braços e beijou sua testa. Feliz com sua decisão e sem nem me importar com a qualidade da escolha, afrouxei a gravata e me apoiei à parede, então vi o copo sobre o piano.

TALVEZ - por Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)



...talvez eu fosse, hoje, uma mulher melhor. Não, não pensa que estou falando em ser melhor como mãe, profissional ou amiga. Nisso até que me saio bem. Tenho boas relações de amizade e sinto que as pessoas em geral gostam de estar comigo. Quanto aos filhos, não tenho dúvidas, amei-os com tudo que sou. Falo isso porque contigo o tempo foi escasso, deixou uma cara de ausência e ficou superficial. Sempre soube que não me pertencias por inteiro. O que nunca entendi é essa sensação de culpa. Não me pergunta de quê, não tenho clareza. Fiz alguma coisa errada? Talvez. Não lembro, por mais que me esforce, não lembro. Vai ver esqueci e, por isso, essa sensação ruim, presa, como se fosse uma segunda pele. Agora, estou eu aqui e, por mais que te pergunte, continuo sem respostas. Minha amiga aconselhou análise. Será? Vou ouvir o quê? Pelo que sei, os analistas não falam. Portanto, vou ter que falar comigo mesma em voz alta. Como quem conta história. Histórias próprias e aí uma coisa puxa a outra e outra e outra... Igual a quem não resiste e fica sempre mexendo na casquinha da ferida, deixando cada vez mais exposta e mais ardida. Quando eu era pequena, mexi tanto numa ferida, que custou a cicatrizar. Lembro bem do que me dizias – vais abrir um buraco tão grande que corres o risco de cair aí dentro – e eu pensava – não quero cair nesse lugar feio. Não sei por que me lembrei disso agora. Viu? É assim que começa. Diz a minha amiga que o processo todo é por associação de idéias. Como puxar a ponta de um fio. Só que eu queria que tu puxasses o fio para me libertar. Mas, aí estás. Prisioneiro de teu próprio corpo, confinado a esta cama, preso a imobilidade e ao silêncio de tua invalidez. O abandono do teu amor está grudado em mim... Talvez, eu tenha mesmo que falar sozinha para me escutar, para ser uma mulher melhor. Mas vou correr o risco de esquecer a culpa - esse fiozinho que te faz presente – só para eu não te perder de vez. Por enquanto, pai, eu continuo aqui.

ESCUTAR PRENDA MINHA É DE BOM-TOM - por Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)



Vou-me embora, vou-me embora,
prenda minha
Tenho muito que fazer
Tenho de ir parar rodeio
Prenda minha
No campo do bem-querer
(Domínio público)

Em criança, quando eu pensava em Porto Alegre, era o monumento ao Laçador o que me vinha primeiro à imaginação e não o hotel no qual eu me hospedaria, a cirurgia de amídalas, os parentes que eu visitaria. Eu pensava imagens e construções simbólicas. Em um artigo no Tribuna, eu fiz uma referência ao papel do folclore no “despertar o sentimento nacionalista de um povo” sem emitir nenhum juízo, hoje, pretendo dar umas pinceladas no assunto, sem a pretensão de escrever um artigo acadêmico, por que não quero perder o contato com a poesia. E a poesia é feita de símbolos construídos através de uma linguagem figurada. Quando eu jantava no Quiosque, eu via aqueles antigos cartazes da Pepsi-Cola na parede e os associava à melodia da Xula dos reclames do rádio e toda vez que ouvia a Xula, eu colocava a letra: Pepsi-Cola eu bebo com satisfação, bebo no inverno, bebo no verão.
Muitos de nós sabemos que Getúlio Vargas, no final dos anos 30, denunciava o que ele chamava de caudilhismo regional e o considerava uma ameaça à unidade brasileira. Isso fez com que mandasse queimar bandeiras, como queimou simbolicamente aquela que o ligava aos seus antigos mestres, Julio de Castilhos e Borges de Medeiros. O historiador Mario Maestri escreve: “O Estado Novo promoveu a invenção da cultura brasileira, substrato da identidade nacional proposta e imposta. Foram criados órgãos e associações destinados à divulgação-imposição do sentimento de amor à Nação: a Liga de Defesa Nacional, o Departamento de Imprensa e Propaganda, a Juventude Brasileira, a Hora do Brasil, a Rádio Nacional, etc”. Em 1945, com a redemocratização do país, iniciam os movimentos culturais regionalistas que reafirmavam a especificidade sulina, em oposição à proposta que marginalizara o Sul.
Aqui eu me despeço do historiador que permitiu que eu conferisse dados e datas, pois sei que ele entrará pelo caminho de uma crítica àqueles que apresentam o passado de forma idealizada e romantizada, que cantam uma democracia rural que não existia, ideia com a qual eu concordo, e volto a ser a criança que muito antes de Caetano Veloso gravar Prenda Minha, sempre se emocionou com essa canção. Embora eu não chame o meu amor de “meu bem-querer”, sempre associo essa canção a grandes amores, a despedidas, a separações. Quem chegou até o penúltimo parágrafo, fez uma leitura de um texto na primeira pessoa, que, embora esboce algumas opiniões políticas, é essencialmente emocional, é singelo, vai do particular para o geral, em suma, canta sua aldeia. Por falha grave na minha atualização cultural, desconhecia essa nova gravação da música que tanto me emociona, tenho certeza que agora muita gente acha de bom-tom escutar Prenda Minha junto com música popular brasileira, americana e outros ritmos de prestígio.

Vivemos em um tempo em que a cópia é mais importante do que o original. As prendas se orgulham de suas superproduções, fazer várias cirurgias plásticas confere status, esposas reclamam de que maridos só acham bonitas as mulheres que investem fortunas em si próprias e não “se dão conta que a beleza delas é artificial”. É muito bom que o Caetano Veloso tenha levado nossa música para o Brasil e para o mundo, com todas as dificuldades que temos em nos projetar fora do Estado, mas, que a mesma composição, interpretada pelo Conjunto Farroupilha, nos tocava mais fundo, isso ninguém de mais de 50 pode negar.

O NADADOR - por Augusto Cruz (Salvador, BA)



A campainha tocou!
Saltou!
Sentiu a gostosa e conhecida água envolver seu corpo. Contorcendo-se, avançou em diagonal rumo à superfície e passou a bater braços e pernas.
Não é um simples bater braços e pernas.
A coordenação motora trabalhada exaustivamente ao longo dos anos, aula a aula, ouvindo os gritos de seu treinador, ora corrigindo movimentos, ora exigindo mais força e empenho.
A turbulência causada por suas braçadas aliada às batidas dos seus adversários tornava o deslocamento mais difícil, mas o ensurdecedor som que vinha das arquibancadas o motivava a dar mais de si.
O cheiro do cloro, o sabor da água tratada, eram ingredientes a mais em sua corrida à vitória.
Lá vem a parede!
Mergulhou, rodopiou e sentiu seus pés no azulejo, dobrou os joelhos e impulsionou o corpo.
Dirigiu-se à superfície mais uma vez para os últimos cinquenta metros.
Os gritos da plateia aumentaram juntamente com o ritmo de seu coração.
À sua volta dois nadadores fortes disputando braçada a braçada!
Agora sabia que estava disputando com os dois, mas disputando o primeiro lugar, ser o segundo significava que seria o primeiro dos últimos.
Sentia todo o esforço nos braços, pernas, pescoço e a respiração ofegante. Como é duro respirar e manter ritmo forte.
Não imaginava que conseguisse nadar em tamanha velocidade por tanto tempo, seu coração pedia que parasse.
Bateu na parede!
Tirou os óculos, olhou para cima rodando a cabeça em busca do placar eletrônico, uma espiral de cores e rostos turvos era o que via ao girar a cabeça, ainda atordoado com o esforço.
O atleta à sua esquerda o abraçou.
Era seu nome que aparecia em letras douradas no placar eletrônico: primeiro lugar!
Venceu! Medalha de ouro!
Uma voz feminina gritava seu nome no alto falante da arena.

-- Acorda filho! Hoje tem aula de natação, você adora! – insistia sua mãe.

DEPOIS - por Paulo Bentancur (Porto Alegre, RS)



Primeiro, o arrebatamento de ambos. Um pelo outro. Depois, a vigília da lascívia. O sexo mostrando que, intenso, não tem limites. Nas noites, juntos, as manhãs entravam na casa luminosas, mesmo nos dias de chuva. O primeiro café bom como café algum jamais fora. Os longos diálogos, os passeios para serem lembrados, a intimidade de declarações que beiravam a embriaguez.
Mas eram dois seres; logo, diferentes. Um dia, um grito dela:
– Não faz isso!
Ele, o coração encolhido – jogara-se na cama que gemeu pouco mais que um sussurro. Ele gostava.
Jogava-se eventualmente, distraído.
Em um mês, quatro gritos. Quatro vezes o coração do rapaz inchando e encolhendo.
Ele terminou antes que ela pusesse um basta.
Dois meses mais tarde, enxergou-a com outro, de mãos dadas, apenas os braços soltos na alegria do afeto, o jeito que ele lembrava.

E era como se ela jamais o tivesse amado.

INSÓLITO - por Augusto Mate (Maputo, Moçambique)




— Como se chama o senhor?
— Mate… Augusto Mate.
— Muito bem! Senhor Mate, conhece a pessoa que está sentada ao seu lado?
— Conheço, sim! É o jornaleiro que se instalou defronte do edifício em que trabalho.
— Pois bem, senhor Mate! Este jornaleiro acusa-o de tentar estrangulá-lo. Tem algo a dizer sobre as alegações que pesam sobre si?
— Seu polícia, eu tentei estrangulá-lo, sim! Mas fi-lo por justa causa…
— Queira ser específico, senhor Mate!
— Hoje, despertei relativamente tarde que fui trabalhar sem tomar café.
Pouco antes da hora do almoço, durante uma reunião que houve no serviço, de tudo quanto se dissera, o que eu ouvi foi:
«nacos de frango»; «omelete»; «peixe no envelope com camarão»…
Nesta reunião o meu contributo foi nulo, pois a fome era tanta que, literalmente, devorava-me as ideias…
— Prossiga, senhor Mate, que eu sou todo ouvidos.
— Então… Quando finalmente chegou a hora do almoço, dirigi-me à minha casa, como de costume.
Porém, para a minha infelicidade, ao lá chegar, o almoço ainda não havia sido confeccionado. A minha esposa, no quintal, com uma faca na mão, estava ainda a perseguir a galinha.
Ela desculpou-se pelo facto de não ter preparado nada para mim, pois, conforme informou-me, ela estava a perseguir aquele caril fazia mais de duas horas.
«Na hora de comerem a minha ração, essas desgraçadas fazem até fila, mas quando chamadas a cumprirem o seu propósito (que é se tornarem prato), elas põem-se em debandada.» — comentei com ela, bastante furioso.
Uma vez que a minha fome era tanta que eu não me sustinha, procurei saber se da refeição do dia anterior não havia sobrado nada.
A minha esposa respondeu-me que sobrara a feijoada, todavia ela tinha-se deteriorado em razão dos cortes frequêntes de energia a que a EDM nos têm sujeitado.
Com o período do almoço já se esgotando, sem alternativas, arrisquei duas garfadas daquela feijoada… Mais, não podia. O fedor à podridão era tão forte que a minha fome se enjoara e sumira. Até o meu cachoro recusou-se a comer as salsichas que sobraram do meu prato.
— Vou pedir-lhe, senhor Mate, que se atenha aos factos. Estamos a falar aqui de tentativa de estrangulamento. Até aqui, o senhor não fez senão dar aulas de culinária!
— Está bem, seu Polícia, tentarei ser sucinto.
… À caminho do serviço, comprei umas chicletes pra combater o bafo à conta da feijoada. Devido à fome, confesso, cheguei a engolir algumas.
Já no serviço, um colega meu que me vira a mascar, perguntou-me o que eu estava a comer. Eu mal abri a minha boca pra lhe falar que estava a mascar, quando ele levou a própria mão ao seu nariz e concluiu que eu estava a comer merda.
Por conseguinte, dirigi-me aos balneários para proceder à higiene bucal, onde, por instantes, dei comigo a ingerir a pasta dentífrica.
— Meu senhor, pule para a parte em que o senhor estrangula a vítima, que não tenho o dia todo!
— Gostaria, seu polícia, de apelar à sua paciência, haja vista estes detalhes a que faço menção terem papel de relevo no ajuizamento deste caso…
— Prossiga!
— Pois então, estonteado; boca seca; estômago oco e grudadado nas costas, arrastei-me escritório afora ao encontro do jornaleiro.
Chegado a si, saudei-lhe e procurei saber se ele já havia almoçado, tendo ele desabafado que enquanto houvesse papel higiénico, ninguém mais compraria o jornal «notícias».
Eu estava faminto, porém não me podia ausentar por muito tempo do escritório; o jornaleiro estava igualmente faminto, mas ninguém lhe compraria jornais, pelas razões que ela avançara, foi então que eu dei-lhe dinheiro e pedi que trouxesse da pastelaria mais próxima, dois hambúrgueres, um para cada um de nós.
Cada minuto de espera, parecia-me uma eternidade. Cheguei até a cogitar a hipótese da salpicar e degustar alguns palitos enquanto o ardina não retornasse. Só não o fiz porque na copa já não os havia.
Quando eu estava prestes a falecer, eis que o agente de segurança do escritório me informa que o ardina aguardava por mim na entrada.
Apesar da rouquidão do segurança, as suas revigorantes palavras soaram-me a música para os meus ouvidos.
Sem delongas, parti ao encontro do ardina como que um cão atrás dum osso.
Quando cheguei a si, ele estava a saborear um majestoso e suculento hambúrguer, e eu com um sorriso de orelha a orelha, perguntei-lhe onde estava o meu hambúrguer.
Ele deu mais uma trincadela no hambúrguer, uma bastante generosa; devolveu-me os trocos e ainda de boca cheia me disse:

«Lamento, meu senhor; mas só havia sobrado um!»

SEMPRE A PONTE - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

SEMPRE A PONTE


A praça, através da janela, um filme antigo sobre uma tela ondulada. O carro estalava sob os quarenta graus centígrados. Ao se locomover lento, parecia tragar uma faixa de asfalto derretido.
Muitos anos haviam passado desde a noite em que tomara o ônibus sentindo aquele vento morno. Deixara para trás a rotina que por vinte anos estendera os dias inchados de cantos de pássaros à beira do rio Uruguai.

Partira com as roupas da Lília, reformadas pela mãe. Sentou à janela, o rosto fixo nas estrelas que jogavam uma corrida sem trégua com o ônibus. Não trazia planos nem sonhos, somente a necessidade de recomeçar alguma coisa que se parecesse com uma vida.

Surpreendia-se por conseguir olhar a ponte como um detalhe da paisagem. Não sentiu monotonia quando a atravessou na camioneta cheirando a ovelha e remédio de gado. Pedia ao chauffeur de Carlos Castellán mais velocidade, o rosto para fora, o vento ajudava a suportar a náusea.

Quinze anos depois, pedia ao colega mais velocidade enquanto esperavam a hora da entrevista com o diretor da faculdade. Não estava apreensiva, era apenas uma formalidade, a vaga para o curso de História era garantida. Não se questionava quanto ao propósito do emprego na cidade que deixara há tanto tempo. Lá, fora apenas um número a mais; aqui, seria a professora especializada que faltava.

Não tivera uma vida má nos anos passados fora. Os primeiros tempos foram tristes, sentia saudade da mãe e do irmão adolescente. A mãe costurando, o irmão entregando as encomendas para as senhoras sujeitas aos humores variados pela maior ou menor dosagem de moderadores de apetite.

No primeiro ano fez algumas amizades que a acompanhariam por toda a estada em Porto Alegre. Não conseguiu aprovação na Universidade Federal, mas a cumplicidade da Lília mandando secretamente algum dinheiro e a datilografia de trabalhos para boa parte da turma custearam a mensalidade e o apartamento dividido com mais duas colegas.

Rosário tinha a sensação de que sempre carregaria consigo aquela dor do abandono que se confundia com dor física. Lília tomou as decisões por ela: o médico do outro lado da ponte, a mudança, a Faculdade.

Rosário encontrou Miguel em 1981. Ele estava voltando para o Brasil. Não era mais o adolescente fascinado pela luta armada de quem Lília falava baixinho para ela antes de casar com João.

Ela acompanhava Miguel nas palestras promovidas pelos diretórios acadêmicos. O mesmo Miguel que propagandeara a luta armada, analisando outros caminhos. Ele tirava os óculos e apertava as pálpebras cansadas sobre os olhos verdes. Ela não conseguia evitar de sentir ciúme do amor adolescente do Miguel e da Lília.

Rosário e Miguel se encaminham para o box 38. Ele tomava ônibus naquele lugar desde o tempo quando veio procurar emprego em Porto Alegre. Ela nunca visitou aquela região da colônia, treme de frio dentro de um casaco de pele de cabrito comprado na Argentina faz tempos.

As bocas deles soltam um vapor espesso, encostam os narizes gelados.

Temos tempo para um café, ele cochicha quentinho no ouvido dela.

Dois cafés, o da Rosário é com creme. Muito açúcar, o café fica mais claro e menos quente, a nata suaviza o sabor.

Trocam um beijo demorado, a língua dele, aquecida; os lábios dela, doces.
Ele a abraça e, acariciando a pele do casaco, a tranquiliza: tudo vai sair bem, eles vão gostar de ti.
Caminham para o ônibus. As poltronas forradas de plásticos, geladas. Se abraçam, o motorista dá a partida. Miguel dorme, anda cansado. Rosário encosta a testa no vidro embaçado e frio, muito escuro, desiste de olhar para fora. Cochila e se sobressalta.

O dia começa a clarear, ele acorda.

E tu, não dormes? Fala perto do rosto da Rosário e ela sente um calor no nariz. Nós temos o mesmo hábito, ela pensa, e ele a olha de um jeito intenso. Estão ligados por uma espécie de éter, exalado pelos olhos, pelo nariz, por todos os poros. Eu nunca senti isso antes, ela murmura. Dormem abraçados até a chegada. Ele começa a reconhecer cada balcão, cada bêbedo, cada louco da rodoviária e das ruas. Caminham no barro vermelho.

Não tem asfalto?

Não, cuidado a poça d’água. Ali é a igreja, à direita, no meio da quadra, a casa da minha tia.

As colinas que cercam a cidade são tão altas, tantas, Rosário pensa numa paisagem de livros escolares e lembra das planuras que se acostumou a enxergar na infância e na fazenda do marido da prima. A cozinha, aquecida pelo fogão à lenha. Vem a dona da casa, ri, beija o filho e chama a muter.
Eu sou uma estranha aqui, não sei o que conversar com eles, ela pensa.

Sentam em volta do fogão, a erva do mate é forte, como ela gosta, a família do Miguel a trata com carinho. Tão diferentes das pessoas a quem ela estava acostumada, cheias de subterfúgios, indiretas.
Os pés das mulheres em sapatos de lã, as falas carregadas de erres vibrantes e os substantivos de gêneros mal flexionados...

Nos últimos anos, conseguiu superar o rompimento com Miguel.


Fora ingênua mais uma vez. Entrou muito pura para a política, pensava que os companheiros de esquerda tinham outra ética. Talvez não fosse nada disso, o problema devia ser com ela. Miguel não fora sacana, qualquer pessoa tem direito de se desinteressar por outra. Ou não? Por que com algumas pessoas não acontecia isso? Conhecia casais que estavam juntos há vinte, trinta anos. Talvez ela nem quisesse isso. Prometera-se não sofrer mais por amor, a vida tinha outras coisas para oferecer que machucavam menos.

O NOVO MESSIAS - Microconto de Tuca Zamagna (Rio de Janeiro, RJ)

O NOVO MESSIAS


Nasceu um novo messias – li no jornal do qual desembrulhei os peixes que, neste momento, lá na pia da cozinha, se multiplicam sem parar.

CONTINHO - Microconto de Carlos Emilio Faraco (São Paulo, SP)

CONTINHO

- Moça, me dá um beijo?
- Não tenho mais nenhum. Deixei todos com meu ex-namorado.
- Moça, pede pra ele devolver os beijos e dá eles pra mim, moça.
- Como assim, pedir beijo de volta, onde já se viu isso?
- Moça, se você não me der um beijo eu vou me matar.
- Tá bom, vem aqui que te dou o beijo.

Da orelha sem o brinco de esmeralda ficou pingando aquele sangue cor de semáforo fechado.

POEIRA - Conto de Gilka Coimbra (Uruguaiana, RS)

POEIRA

Não sei se falo ou não, mas eu ando perturbada, e se te conto é para endireitar os fatos, apesar de desconfiar que esteja condenada a um longo e lento martírio.

Não sei bem em que dia, o relógio despertou-nos no horário e, depois que servi o café, todos se encaminharam ao trabalho. Fiquei só. Como sempre, iniciei pelos quartos no andar de cima da casa. Abri as janelas, sacudi bem as cobertas, alisei os lençóis das camas, juntei a roupa para a lavanderia e desci as escadas em direção à cozinha. Foi com um duro golpe na cabeça, que percebi que havia caído e rolado escada abaixo. De um barulho infernal sobreveio um silêncio ensurdecedor e, sem saber bem o porquê, adormeci.

Acordei assustada, demorei alguns minutos para entender que já era quase noite e que o lusco-fusco invadia casa adentro pela janela da frente.

Quis apressar-me, precisava retirar o pó dos móveis. Todo o santo dia reviro os armários para passar um paninho. De tanto limpar aprendi a identificar a poeira em suas diferentes tonalidades – do branco gesso ao âmbar claro, dos tons do ocre ao verde musgo até o cinza escuro – e dependendo da cor, sei bem de onde vem aquele pozinho nojento que limpo, limpo e retorna todo o santo dia. Com habilidade, sempre fiz chegar o paninho às prateleiras onde guardo os brancos lençóis de linho bordados à mão; ao rodapé da escrivaninha de cedro; à lombada dos livros na sala de estar; por entre os desenhos externos da cristaleira e às caixas guardadas na parte de cima dos guarda-roupas – reduto preferido da poeira.

Refeita da queda, resolvi iniciar meu trabalho doméstico. Foi quando notei que não estava sozinha. Havia uma mulher de bruços no meu sofá. Cheguei mais perto. O rosto enterrado no assento, meio de lado, estava completamente desfigurado. Uma das pernas pendia em direção ao chão como prova de um último esforço. Senti náuseas e fiquei estonteada, virei de costas, pois aquela imagem me era insuportável. Respirei fundo e fiquei mais tonta ainda.

Como entrou, se a porta estava fechada? Se te conto é para achar uma lógica que me explique tudo pelo que venho passando.

Permaneci de costas para ela, por um bom tempo, mas precisava tomar coragem e ter certeza. Segurei o pulso sem olhar direito. Estava morta. Como explicar isso à minha família, todos trabalham tanto, mal param em casa. Não, não iria incomodá-los com aquela mulher deitada no meu sofá da sala e a casa por limpar.

Não sei bem quanto perdi ali, pois perdi também a noção do tempo, e o ar estava cada vez mais irrespirável. Uma exalação fétida começava a emanar do corpo inerte. Não suporto mais esse cheiro, essa sujeira toda na minha sala, com que tenho convivido e que me leva quase que à beira da loucura.
Há dias não tiro o pó, ninguém tira. A noite já desceu várias vezes e nenhum dos meus chega do trabalho, o que me deixa extremamente aflita. Numa massacrante rotina de espera não como, nem bebo, mas não me faz falta, só me incomoda mesmo essa poeira cinza, tomando conta do meu corpo. Invadindo tudo, esfarelando-se em mim.

Prisioneira nesta sala de luz bruxuleante, eu ando perturbada, e se te conto é porque preciso de resposta.

– Estarei morta, sem conseguir morrer?

DAS PROFUNDEZAS - Conto de Augusto Cruz (Salvador, BA)

DAS PROFUNDEZAS (Para Herman Melville)

Call me Ishmael.
(primeira frase do livro Moby Dick, de Herman Melville)

Dizem que já matei mais de mil homens. Pode ser verdade, pouco importa.
Sei que afundei navios de todo tipo e tamanho: fragatas, escunas, veleiros, armadas, pesqueiros, cargueiros e negreiros. Foram da Escandinávia, Prússia, Áustria, Espanha, Portugal, Inglaterra e, principalmente, da América. Reconheço bandeiras e flâmulas, apitos e silvos e me divirto tentando adivinhar a nacionalidade de cada um. Quase sempre acerto.
Atacar os pesqueiros me apraz, em especial os baleeiros. São barcos pesados, mas rápidos, e por isso tornam-se um desafio e uma diversão, além, claro, de uma boa vingança.
Não entendo o porquê dessa fome doentia por devorar tudo o que os oceanos oferecem. Por vezes matam apenas para extrair alguns nacos de animais submarinos, como barbatanas, caudas e dentes.
Nunca comi humanos, como erroneamente querem fazer crer, quando me demonizam, mas admito que já dilacerei pernas, braços e crânios, sem dó, nem piedade.
Artimanhas, estratégias, gritos, batuques, iscas, armadilhas... tudo isso é inútil, meu senso de direção é especial e me coloca em vantagem, ademais minha inteligência é sempre subestimada, mais uma vantagem a meu favor.
Meu criador me fez diferente de todas as outras de minha espécie. Sou enorme, estou no topo da cadeia alimentar, diferente de minhas irmãs, e tenho um couro duro de penetrar. Sou mais veloz que o Nautilus e meu olhar é profundo e diabólico, é o que dizem as melancólicas canções dos marinheiros que sobreviveram aos meus ataques.
Há um velho lobo do mar que me atrai: ele é ambicioso, odioso e raivoso e até lhe arranquei uma perna e afundei-lhe duas embarcações. Sinto seu cheiro a mil léguas de distância. Poderia tê-lo matado em mais de uma oportunidade, mas me divirto em alimentar seu ódio e com a sua vaidade em querer ostentar o título de meu assassino.
Os marujos afirmam que ele é a própria encarnação do diabo. Não, ele é humano, mas se permite apresentar ao mundo sem máscaras, expondo suas vicissitudes, sem vergonha de julgar e ser julgado.
Não gosto dele. Admito que é persistente e tem a coragem de um tubarão, mas no fundo é um arrogante e frio matador de baleias.
Faz alguns meses que não o vejo, mas há pouco farejei seu cheiro e sei que logo verei as velas de seu navio baleeiro. Ele cheira a rum, suor e tabaco, como todo marujo que se preza, mas há um toque de enxofre, fruto de medicamentos para curar ardores estomacais. E, mais do que tudo, farejo o pavor dos homens que o acompanham, eles temem a mim tanto quanto a ele.
É o odor do medo humano que me deixa em torpor. É minha droga para agitar-me. Sinto vontade de saltar, de me exibir e mostrar meu poder aos insignificantes pescadores.
Finalmente vislumbro as velas, dessa vez é uma embarcação maior. Venha pescador amaldiçoado! Hoje não me saciarei em tirar-lhe apenas uma perna! Prepare seu melhor arpão!
Alguns botes foram lançados ao mar. Eles me viram! Com o navio a uma milha de distância iniciei um nado a 30 nós, bati na popa e o navio adernou, vários homens caíram na gélida água. Logo morrerão de frio. Da mesma forma que derrubei o Essex.
Saltei e em minha queda produzi ondas que viraram dois dos cinco botes que tentavam me cercar, mergulhei e quando dei a volta para retornar à superfície vi alguns homens sendo resgatados. Mandíbula aberta, lacerei pernas e troncos e o horror se estampou nos rostos retorcidos dos marujos que já pressentiam serem os próximos desmembrados.
Senti uma pontada em meu dorso. Um arpão mais duro que o habitual, o calor de meu sangue me aqueceu e só fez aumentar meu frenesi, que já era grande pela batalha. O gosto amargo da carne humana que cuspi me deixava mais enfurecida. Em instantes, peixes menores e parasitas se alimentarão deles!
Outra pontada, agora em minha lateral. Definitivamente, precisava pôr fim a essa brincadeira! Num movimento circular virei mais dois botes, mordi alguns homens, mas ainda faltava um barquinho, exatamente o liderado pelo inimigo maior. Ouvi gritos de dor e desespero dos poucos sobreviventes que ainda teimavam em nadar, logo congelarão ou afundarão.
Apesar da gritaria, os urros, impropérios e blasfêmias do líder da tripulação, ainda soavam mais altos. Eu ouvia e o ódio tomava conta de mim.
Eu sou o demônio que o mandará às profundezas!
Mergulhei e voltei à superfície ao lado de seu bote, uma onda por mim provocada o balançou e os homens caíram ao mar, menos um, o meu rival. Ele foi rápido e atirou seu grosso arpão em mim. Senti o impacto do metal, rasgando meu couro. Mais do meu sangue se misturou à agitada água. Em retirada, nadei no sentido contrário à embarcação, mas maldito veio junto. Na ânsia de não cair do barco, ele se amarrara, mas usou, por equívoco, a mesma corda de sua arma, mergulhei e nadei em círculos sentindo a dor provocada pelo arpão, senti uma coisa presa em mim, era ele, o meu antagonista, estávamos ambos enrolados na mesma corda do arpão. Ele gritou “Matei a baleia!” e cantou sua vitória.

Avistei um caixão flutuando e nele havia um homem jovem. Ouvi meu assassino e vítima gritando para o sobrevivente: “Escreva a história Ishmael”. Afundei. E ele, aprisionado a mim, me acompanhou. Nunca mais voltamos à superfície.

O CASO DA MULA-SEM-CABEÇA - Conto de Dôra Borges (Cássia, MG)

O CASO DA MULA-SEM-CABEÇA

Lá pelas bandas da Serra Preta havia uma cisma de assombração que era afamada por toda a região, sobretudo na época da Quaresma (Ô tempo danado, sô!). Ninguém se arriscava a passar por aquela encruzilhada, onde a estrada estreita fazia uma praça - dava de se alargar - talvez para facilitar a parada daqueles que por ali passavam a cavalo e se confundiam por onde seguir nos caminhos do entroncamento. Até diziam que, por ser um lugar assombrado, ao chegar ali a confusão era certa, principalmente à noite (...e o medo também).
Por aqueles lados, o que não faltava era uma boa estória sobre aquela passagem. Mas a que vou contar agora, eu juro que foi verdade porque ouvi da minha mãe, que ouviu da sua avó, que contou com detalhes de se arrepiar.
Era no tempo da quaresma (como tinha que ser) e João Francisco, Teobaldo, Joaquim e Ozório, dois irmãos da minha bisavó e dois amigos deles, resolveram ficar na cidadezinha até o anoitecer, aproveitando a prosa no bar do Juca, pois a lua era cheia e a estrada estaria iluminada. Um pouco alegre depois de alguns goles a mais, subiram em seus cavalos trotadores e seguiram a viagem, uma légua e meia até as primeiras fazendas. Mais ou menos na metade do caminho, iriam passar pela tal encruzilhada, seria inevitável. Não tinham nem uma trilha para desviarem.
A conversa animada, entre piadas e gargalhadas, foi interrompida bruscamente ao avistarem um clarão no alto do morro, iluminando ainda mais a areia branca da estrada. Era a mula-sem-cabeça, não tiveram dúvida. Ela vinha para a encruzilhada encontrar outra que estava arrastando as patas pelos lados de lá.
Não havia tempo para mais nada, a não ser fazer o que aprenderam com os seus antepassados. Desceram dos cavalos, saíram da estrada e Teobaldo desenhou com um pedaço de galho de árvore seca, uma estrela enorme chamada “cinco Salomão”, porque tinha cinco pontas iguais. Dentro dela, colocaram os cavalos e deitaram debruço. Ozório recomendou a todos para esconderem as unhas, os dentes e fechar os olhos, pois a mula não podia “ver” essas partes do corpo de nenhum deles (nunca entendi este detalhe, pois nem a minha fértil imaginação de criança, desde a primeira vez que ouvi esse caso, pode localizar os olhos desta assombração). Fazendo isso, eles estavam salvos. Foi uma correria danada para darem conta de se ajeitarem antes que ela passasse. E ao ouvirem as patas da “bicha” tinindo nas pedras da estrada, e o poeirão levantando após a encruzilhada, sentiram-se aliviados.
Eles não foram notados porque ela estava furiosa para encontrar a sua rival. O encontro das duas foi uma briga só, não dava para olharem para trás, seria arriscado. Mas o fogaréu que se avistava de longe já era conhecido por qualquer caboclo da roça.
Passado o medo e o susto, puderam pegar os seus cavalos e saírem da estrada. Sem voz e com os olhos arregalados, chegaram em suas fazendas com as calças borradas.
No outro dia, os aventureiros tinham mais uma estória da mula-sem-cabeça da encruzilhada da Serra Preta para contar, sem esquecer os minuciosos detalhes que o acontecido merecia.

Ainda hoje as novas gerações da minha família escutam os mais “reais” casos de assombração (que eu faço questão de contar) e, à meia-noite de lua cheia, na sexta-feira da paixão, ninguém se arrisca a sair na porta de casa ou a olhar da janela para a rua, pois é certo que podem ver uma mula-sem-cabeça descendo a Av. Amazonas ou o carroção de rodas quadradas subindo a Rua Dep. Delson Scarano, rumo ao cemitério da pacata cidade do interior das Gerais.

PRESENÇA - Conto de Fabrício Bastos (Santa Cruz, RS)

PRESENÇA

Chegaram antes os sobrinhos e depois os primos, em um rumor de vozes saudosas de tantos assuntos ainda sem tempo; minha prima, hoje uma senhora, como eram as nossas tias de infância. Do fundo do numeroso grupo que aos poucos vencia saudar, a passinhos curtos, surgiu a alva figura de meu tio Raul. Desvencilhei-me dos mais jovens e fui ao seu encontro. Quando apertei as suas mãos ele me olhou de muito longe, uma distância tão grande havia detrás de seus olhos que temi, por um instante, que não me reconhecesse. Mas era o tempo de buscar-me dentro de suas lembranças, aquele frequentador assíduo de sua casa, no meio dos outros primos, todos hoje adultos. Então veio o sorriso que eu pude decifrar, depois de tantas alterações que o tempo fizera em seu rosto, como aquele riso silencioso em que perguntava o que andávamos fazendo por aí, já na idade de incomodar as gurias. O que ele não sabia, imagino, é que a guria que eu gostava de incomodar naquela época era a sua filha, minha prima. Hoje ao lhe ver posso sentir que tudo não só está perdoado, como permanece ignorado.
Mesmo sem possuir o talento da frugalidade, o falar fácil que torna os encontros e principalmente os reencontros bem mais agradáveis, tomei-o pelo braço e nos afastamos dos demais, junto a um balcão de mármore, para melhor escutarmos as nossas vozes carregadas de memórias. Mas elas não vinham. Lembrei que ele também nunca fora alguém de muitos assuntos. E nos contemplamos em silêncio, reféns de alguns canapés e excertos das conversas alheias. Aos poucos fomo-nos juntando aos demais, novamente, e eu o fui perdendo no movimento de tantos ombros amigos. A ponto de não mais entender o meu gesto de ir buscá-lo, destacando-me dos demais. Logo eu que nem era seu afilhado, que nunca fomos tão chegados assim, apesar de frequentarmos a mesma casa durante tanto tempo e a sua presença me trazer tantas lembranças. Severo na educação dos filhos, sabíamos desde pequenos, tratar-se de um homem dedicado a algumas leituras mais profundas e que também amava a música. Tocava piano e cantava em algumas reuniões de amigos e familiares mais próximos. Conhecíamos, também, o Tio Raul pelo pensamento cartesiano, pela economia nas emoções e pelo comedimento no beber, exceção em nossa família. Agora, tendo-o perdido no redemoinho da ceia de Natal a que torno a comparecer após tantos anos, chego a concluir que, se era respeitado por todos, apesar do péssimo palpite para negócios – perdera uma fortuna, sem nem contar com a colaboração de cavalos e mulheres –, talvez jamais tenha sido amado por alguém além de seus próprios filhos. De quem se pode apenas presumir um amor subterrâneo, sem beijos e sem abraços, sem palavras carinhosas, mas algo que se expressava semelhantemente ao respeito. Gestos, como o cuidado que um neto seu tem agora ao lhe acomodar em uma cadeira junto à área externa da casa, longe dos cigarros e das conversas rápidas demais. Onde a brisa e a visão do quintal absorverão seu olhar, que muito raramente se voltará ao lado, apenas para recusar uma bebida ou um prato de torta.

Não somos consangüíneos, ele é viúvo de uma tia minha desaparecida muito jovem. Aquela morte, na época, parece não ter-lhe amassado a gola. Seu caminho até o café, seus horários corretos, sua roupa correta, seus óculos de armações grossas e escuras, seus atributos todos ali mantidos em um traçado descrito em dois mundos, simultaneamente. O das reflexões, onde certamente haveria a descrição completa e devidamente categorizada de todos os fatos da vida, das pessoas que o cercavam e as suas respectivas funções, na família, na sociedade e no universo. Lá deveria residir a explicação perfeita para as suas perdas pessoais e para o insucesso financeiro, ainda que vivesse com certa tranqüilidade apenas de seu trabalho como profissional liberal. E o outro em que convive com seus familiares, dá ordens aos empregados, troca ideias no Café, onde não chega a se sentar, mas consome um cafezinho simples e sem açúcar, que deixa esfriar sobre o balcão, para a inquietação de seus interlocutores. Estes não são muitos: o dono do cartório localizado em frente e que só precisa atravessar a rua, o que faz a cada vez que enxerga alguém que lhe agrade para a “chacrinha”; o meu pai, que fala por todos; o vice-prefeito, cuja única função pública é passar o dia por ali, escutando o que se diz na cidade, e mais alguns outros de menor relevo. Isso naquele tempo em que ainda havia o Café Oásis, por onde eventualmente eu cruzava apressado, cheio de vida, em busca de um picolé. Hoje, apesar de ainda partirem da velha casa da Rua Sete, não sei mais onde lhe poderiam levar seus passinhos de ancião. Mas deve ainda andar pelas duas calçadas que nunca se encontram, uma em que pisa, outra onde ele é uma espécie de vento. Dois cálices próximos ao meu rosto vêm me trazer de volta àquela sala, às margens de um belo gramado que emoldura a piscina azul e retangular. Flutuavam um pouco acima de uns seios fartos, de matrona. Minha prima, que sempre fora a mais esperta e seu sorriso, que mesmo agora apenas querendo me alcançar um dos cálices, fez meu coração bater apreensivo, ansioso. Escolhi o da esquerda e ela recolheu o outro, incitando-me a um brinde. Ergui-o de volta levemente inclinado até encontrar o seu e esbocei o gesto de dizer alguma coisa a título de celebração, o que acabou não se completando. Rimos e bebemos estes e mais outros, falando da nova geração, comparando-os com a nossa. Coisa muito tola de se fazer, pois naquela idade éramos todos segredos para com os adultos e por que aqueles pirralhos também não o seriam? Rimos de novo e ela disse-me olhando por entre as pessoas já bem mais agitadas: – Acho que o pai quer ir embora. Em um movimento onde pude ver toda a extensão de seu braço, hoje mais forte, a mão ainda delicada deixou o cálice sobre o balcão de mármore e saiu deslizando seu vestido colorido, bem de verão. Um pouco do seu perfume ainda me fez sorrir sobre o espumante.

Amparado por um de seus netos no momento de erguer-se da cadeira, Tio Raul se mostrou novamente aquele homem alto e distante. E partindo dos que estavam ao seu lado, iniciou o ritual de despedida, que envolvia também um pouco de conversa com os mais velhos. Meu pai, que não está mais entre nós, nessa hora lhe seria mais um transtorno, pois não esgotaria nunca o assunto, atrasando por uns trinta minutos todo o processo de partida. Como já se calara há cinco anos, os assuntos agora eram curtos e formais, avançando lenta mas firmemente entre os pequenos grupos que se formaram desde a área externa até a sala, onde as pessoas estão mais comprimidas e mais eufóricas. Suas feições, no entanto, não se alteravam. Cumprimentava a todos, tendo atrás de si o sorriso compreensivo de minha prima. As rodinhas se calavam por um instante, e tão logo ele passava tornavam a falar ainda com mais ímpeto. Estavam todos tão envolvidos em sua volúpia natalina, seus afetos de espuma, que não percebiam a natureza do que passava por eles lhes estendendo as mãos frias pela última vez. Desde o ponto junto ao balcão onde eu estava e onde, percebo, estive durante toda a festa, um dos últimos a ser percorridos antes da porta que dá acesso ao restante da casa e à saída, mantinha as mãos secas, prontas para saudá-lo. Já uma frase deixara de prontidão: falava de nos encontrarmos novamente no Natal do ano que vem. Proposta que, se fosse confirmada por ele, ambos estaríamos mentindo. Ou apenas ocultando verdades tácitas, assim como não precisaríamos conversar sobre a maneira como a sua segunda mulher abandonara o casamento tão repentinamente, indo desposar outro jovem como ela em uma longínqua cidade nordestina. Não lhe perguntaria as suas considerações sobre o acontecido, apesar de saber que as tinha muito bem elaboradas com premissas sólidas e desenvolvimento pertinente, onde tudo era continuidade lógica, ainda que de desfecho inesperado. Na medida em que se aproximava, pude perceber nele uma certa luminosidade; era mesmo ele, o Tio Raul, sob a escassa matéria que ainda veste a sua alma.

A despedida foi sem a frase. Fui protocolar, como havia estranhado nos demais, e a minha prima, balançando a chave do carro entre os dedos, disse-me que ia ali e já voltava.

JANELA DA FAMA - Microconto de Tuca Zamagna (Rio de Janeiro, RJ)

JANELA DA FAMA


Sentou na janela e gargalhou, cantou, fez careta, cuspiu, xingou a multidão lá embaixo, tirou a blusa, balançou os seios, tirou a saia e a calcinha, rebolou de quatro, desequilibrou-se e caiu doze andares, morrendo de rir.

NEGAÇÃO - Conto de Vera Ione Molina Silva (Uruguaiana, RS)

NEGAÇÃO

Socorreu-se do passado. Abriu o baú da sala de estar e se apropriou de um tempo em que não havia Miguel. Lembranças com cheiro de festa se sobrepuseram à sensação de perda. Melodias alegres encheram o apartamento sombrio. Fotos amareladas de uma adolescente de longos cabelos castanhos recriaram um cenário muito distante. O cheiro ácido dos papéis antigos e a naftalina e o vinil dos long-plays misturaram épocas na memória.

(Uma garoa fina atravessando uma tarde sem presa. Um céu ruço. Água e óleo diesel no asfalto. O couro molhado dos calçados pisando minúsculos arco-íris. Uma casa cheia de sons, onde as pessoas pouco sabiam umas das outras. Pagara para entrar, era a campanha de finanças de um jornal. Do jardim, o cheiro de terra molhada. Era de novo criança na varanda de casa. O cheiro do cachorro e dos bolinhos de chuva e do café recém passado. Miguel chegou mais tarde, assim que a viu, aproximou-se. O contato da roupa úmida adormecia o nariz de Rosário. Era a segunda vez que se viam e os lábios se procuravam molhados de vinho).

Como uma brincadeira de infância que depois de encher uma tarde não tem mais sentido, o baú não prendia mais sua atenção. Refugiou-se no sofá de onde avistava as copas das árvores, ao longo do muro. O militante novo calçando os chinelos do Miguel para ir ao banheiro. Hoje achava engraçado, quando aconteceu, gritou que ele fosse mijar descalço. Não queria que um cara debochado calçasse os chinelos do seu companheiro. Se soubesse que o Miguel ia trocá-la por outra mulher teria outra reação. Pelo menos não era uma jovenzinha com quem casaria, teria filhos. Essa possibilidade a deixou estarrecida.


Deixou o sofá e foi ao quarto. Tateou o chão debaixo da cama, jogaria fora os chinelos. Lembrou Teresa, uma jovem conhecida de militância: homens só deixam os chinelos velhos quando vão embora. O telefone tocou. Engano.

DISTRAÍDA - Microconto de Marga Cendón (Uruguaiana, RS)

DISTRAÍDA


Nunca observava a validade das paixões. Congelava-as sem etiquetar.

O SALTO - Conto de Augusto Cruz (Salvador, BA)

O SALTO

Não me recordo de meus pais. Na verdade, desde que me lembro a minha memória sempre foi muito curta. Mal recordo da última vez que comi.
Sei que já dei a volta ao mundo, ou pelo menos ao meu mundo, umas cem vezes, ou teriam sido mil?
Algumas imagens surreais são recorrentes: Um escafandrista. Um baú. Um polvo.
Por vezes o som de batidas ecoa em meus ouvidos. Fico tonto, perco a direção.
Vejo meu reflexo num espelho e brigo comigo.
A monotonia do comer, rodar, comer, rodar, comer, rodar, deixa meus nervos à flor da pele.
Já estou cansado dessa vida. Não tenho um oponente, não tenho amigos, não tenho uma fêmea para me confortar.
E então, meu instinto me fez descer até o fundo.
Senti a aspereza das pedras em meu corpo.
Subi a toda velocidade e saltei.
Senti o ar, mas o oxigênio desapareceu.
Era mais alto do que imaginava. Não conseguia respirar. Mas o ar fresco, em contato com meu corpo, me trouxe uma sensação contraditória de prazer e medo.
O salto. A queda. O baque no chão duro.
Ainda me debati uma, duas, três vezes. Já não respirava mais.
Desprendi-me de meu corpo. Olhava-me de cima e via um ser inerte, colorido e patético estatelado no piso marrom.

Tornei-me mais um número nas estatísticas dos peixes Betta suicidas.

AMOR DE ABACATEIRO - Conto de Márcio Estamado (Álvares Machado, SP)

AMOR DE ABACATEIRO

En el tronco de um árbol una niña
Grabó su nombre enchida de placer
(Eusébio Delfin)

O tronco rugoso faz cócegas na palma da mãozinha pequena de Maria Luiza. A menina o alisa uma...duas...várias vezes. Olha para cima, bem para o alto, mas não consegue enxergar a copa daquela árvore, que sempre lhe parecera tão misteriosa. No quintal de sua casa, o silêncio dessa tarde nublada é quebrado apenas por vozes indistintas, vindas do pátio vizinho. Maria Luiza respira fundo, sentindo uma brisa fresca trazer-lhe o cheiro doce de arroz-com-leite. Pensa que a avó deve estar na cozinha. Satisfeita de estar ali, de respirar, de viver, a menina vê ao redor de si o jardim, a terra um pouco seca, algumas galinhas que disputam a bicadas os últimos grãos de milho. Volta suas atenções para o abacateiro. Lembra-se que seus pais se perguntavam à mesa, na noite anterior, como é possível que aquela árvore tenha nascido sem ninguém plantá-la. A menina, olhos fixos, boca entreaberta, olha abismada para a árvore, de alto a baixo. Mas como pode alguém nascer sozinho? Ela, Maria Luiza, sabia que tinha nascido de uma sementinha plantada pelo pai na barriga da mãe. Mas quem será que plantou essa árvore? Será que ela tem um pai?
O abacateiro, do alto de sua imponência, se comove com a curiosidade da menina, que segue a fita-lo, com enlevo. Maria Luiza nunca lhe dera aquela atenção. Qual seria o motivo daqueles carinhos, daquele rosto angelical a olhá-lo tão atentamente? De repente, a menina desperta daquela contemplação. Com seis ou sete passos, está na cozinha. O abacateiro aguarda, desconfiado. Maria Luiza volta, carregando formão e martelo. Com pouca habilidade, começa a entalhar na casca dura da árvore. O abacateiro sente cada martelada sem poder gemer ou gritar. Quantas ainda estariam por vir? O que se vê é um quadro que, não fosse pela dor, e pela condição de planta, lhe provocaria risos. Maria Luiza, a língua rosada entre os lábios delicados, se esforça, martela, quase às vezes acertando os próprios dedinhos. Olha para cima e para o formão, muito séria e concentrada. Depois de alguns minutos, a menina para.Vê, risonha, o resultado de seu trabalho. Entalhadas no tronco estão as iniciais de seu nome, ML, Maria Luiza. O vento que prenuncia uma tempestade delineia, na carne exposta da árvore, os contornos desses símbolos mal traçados. De que Maria Luiza agora lhe pertence para sempre, não há dúvidas, e o abacateiro deixa cair junto a ela uma de suas flores, diminuta, mas carregada de afeto. A menina a recolhe, não sem antes olhar fixamente para o tronco daquela árvore tão grande e tão bonita.
Durante muitos anos, o abacateiro maturou seus frutos e os deu para Maria Luiza e sua família. Muitos eram doados, alguns poucos vendidos. Os abacates e a copa nunca foram tão bonitos e vistosos, mas o tempo passou, a menina cresceu, e, de súbito, o convívio acabou. Maria Luiza tinha ido tentar a vida longe. Parece até que arranjara namorado.
O abacateiro, nos anos seguintes à partida de sua companheira, recolheu-se a um silêncio absoluto, silêncio que somente se quebrava quando um vento muito forte lhe sacudia os galhos. Parou de dar frutos. Parecia que, ao contrário de uma gravidez psicológica, o abacateiro contraiu uma esterilidade que não era explicada com argumentos científicos. Por muito tempo foi assim. O abacateiro ouvia, sentindo-se um pouco vingado, a família reclamar de que os frutos haviam acabado.
Em um sábado ensolarado e frio, Maria Luiza voltou. Era agora uma mulher, tinha filhos, marido...No dia de seu retorno, um vento forte sacudiu os galhos do abacateiro; parecia chamara a antiga paixão. Maria Luiza, ao passar por ele em direção à cozinha, sequer notou o velho amigo. As horas se passaram, o vento parou, o silêncio se fez.
No fim da tarde, ela retornou ao quintal de sua infância. Olhou ao redor, com o mesmo olhar deslumbrado de antes. Num relance, lembrou-se das letras que havia marcado há tantos anos, no tronco daquela árvore. Ainda estavam lá, escurecidas pelo tempo, tortas, mas nítidas. Maria Luiza riu dessa falta de jeito. Abraçou-se ao tronco e o beijou.
-Meu bom amigo! Nunca te esqueci.

O abacateiro queria responder, mas o máximo que conseguiu foi um farfalhar agitado e contente de suas folhas. Ao final desse ano, alguns botânicos de uma universidade local foram chamados por um vizinho mais atento. Chegaram à casa dos pais de Maria Luiza, que já havia ido embora com os filhos e o marido. A razão da visita dos estudiosos não foi apenas a maturação precoce dos abacates. Os frutos, caracterizados por serem piriformes ou redondos, estavam suspensos dos galhos, pesados, de um verde vivo. E em forma de coração.